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Maria Julia Fernandes Souza

1947 - 2021

Passava a tarde cochilando no sofá com sua gatinha, depois reclamava que não conseguia dormir a noite toda.

Ajudou a criar seus três irmãos e alguns primos por ser a filha mais velha e, também, uma das primas com mais idade; cresceu assim, olhando os menores. Sempre trabalhou muito, foi criada no sítio, imersa na cultura do Sul do país. Fazia muito frio na região, assim ela ia às vezes no meio do gelo, quebrando geada para ir trabalhar e levava - muitas vezes -, um sapato para usar na escola ou no trabalho, pois sabia que nesse percurso iria molhar a roupa e o calçado. A vida humilde não lhe permitia ter brinquedos; Maria Julia brincava com pedrinhas, com pedacinhos de pau; nas brincadeiras, era a imaginação de criança que prevalecia.

Quando adulta, montou um salão de beleza, onde trabalhou por muitos anos. Ela até fez marmita uma época para vender e aumentar a renda da família; mas a profissão oficial dela era cabeleireira; chegou até a dar vários cursos nessa área. "E ela amava ser cabeleireira! Meu Deus, até noiva ela arrumava. Na minha primeira comunhão foi ela quem me arrumou, assim como aprontou a minha mãe e a minha tia para o casamento delas. Então sempre tinha esses momentos marcantes em que produzia o pessoal", recorda a neta Pamela. Maria Julia também sabia fazer as unhas; porém as suas especialidades eram os penteados e a técnicas de permanente, numa época em que as pessoas queriam ter os cabelos cacheados para ficarem na moda.

Na casa dela sempre tinha lugar para mais um, os cunhados praticamente moraram com ela - foram uns oito cunhados -; algumas empregadas do salão moravam lá também; ela sempre dava um jeitinho de acolher. Era comum ter gente na frente de sua casa esperando depois do almoço, porque ela arrumava um pratinho de comida para quem não tivesse o que comer. "A gente sempre fala que ela foi uma mãe de multidões. Mãe de quatro filhos, porém na verdade, ela foi uma mãe para muita gente, para o meu pai, para o meu tio, por exemplo - que eram os genros dela. Então, digo sempre que ela foi uma pessoa diferenciada.", relembra Pamela orgulhosa.

A neta se lembra bem da avó trabalhando no salão: "Eu participei um tempo da rotina de trabalho da minha avó, via as amigas dela que iam fazer as unhas, que iam fazer permanente. Certa vez, peguei uma tesoura - quando eu era bem pequena -, e cortei o meu cabelo, tirei a franja inteira, essas coisas assim que criança apronta!".

Maria Julia gostava muito de conversar com suas amigas, era bastante comunicativa; inclusive, chegou a organizar as festas da igreja por muitos anos. Amava fazer comida, era um dos seus passatempos favoritos: cozinhar e reunir a família - era todo mundo em volta da mesa mesmo, tem até um lugar, uma edícula na casa, que a família chama até hoje de "Dona Julias Convention Center", um pequeno salão de festas em que cabem em torno de 40 pessoas onde foi feita a festa do casamento de Pamela; onde foram feitos alguns "mêsversários" do bisneto. "A reunião acontecia na churrasqueira que, anteriormente, era a vidraçaria do meu avô; nós reformamos e transformamos neste pequeno salão.
Algumas de suas preparações culinárias familiares eram bem típicas como quirera com feijão no fogão a lenha e os biscoitinhos. Muitas também eram loucos pelos pãezinhos, roscas, rosquinhas e pães de queijo.

Super amorosa, acolhedora, tranquila e guerreira. "Lembro que ela nos educava - porque a minha mãe trabalhava, então eu praticamente fui criada por ela. A mãe e o pai trabalhavam bastante, então eu passava o dia com o vô e com a vó - ela sempre dizia: ‘oh, isso está errado’, me chamando a atenção."

Vó Julia tinha amigos que eram como irmãos, ela e o marido foram os primeiros moradores do bairro praticamente; então as pessoas foram chegando depois e eles acabaram também os acolhendo. Moravam em uma Companhia de Habitação Popular (COHAB), que depois se tornou um Bairro próximo ao Centro. Lá, Maria Julia, seu marido e os amigos criaram os filhos juntos, eram realmente todos muito próximos, praticamente uma só família.

Maria Julia afirmava que o mundo só começará a ser mudado quando todas as pessoas se importarem de verdade umas com as outras; ela dizia: "O fulano não tem emprego, vamos dar um jeito"; "Tal pessoa está passando necessidade faremos uma cesta básica"; "Coitado, não tem onde morar, mas quer estudar, vou chamar para morar aqui em Lages".

A família reunida, ter os filhos, os netos, os genros, o bisneto - que é filho de Pamela – sempre pertinho, a casa cheia, tudo isso era o que fazia a felicidade dela. "A casa da minha mãe era do lado da casa dela, e não tinha muro entre elas, eram lotes separados, contudo na parte de trás elas tinham livre acesso à casa uma da outra. Quanto aos meus tios, todo mundo passava pelo menos uma vez por dia lá para vê-la, fora um tio que não mora tão perto, esse ia sempre aos domingos."

Maria Julia tinha dois costumes que eram bem engraçados: quando ela estava assistindo novelas, ficava brigando com os personagens "Ehhh porque essa mulher não vale nada mesmo!"; também ficava brigando com o jornal e com a televisão. O outro costume pitoresco era que ela falava: "Eu não gosto de dormir de tarde!". No entanto, ela almoçava e ficava sentadinha no sofá com a gatinha dela, dava um tempinho e já estava dormindo, atrapalhando seu sono noturno.

"Outra coisa bem bacana sobre minha avó é a relação com o meu avô. Ela e meu avô nasceram no mesmo ano, no mesmo mês - em janeiro de 1947. Ele era vidraceiro e foi colocar um vidro em São Joaquim - que é uma cidade aqui próxima de Lages - e ele morava em Lages, fez um serviço esporádico em São Joaquim e minha avó trabalhava nos Correios naquela época. Ela o viu passando pela janela, bateu na janela e deu um "tchauzinho" para ele e disse ao colega de trabalho: "Está vendo aquele compridão ali? - meu avô era bem alto e ela tinha 1,50m - eu irei me casar com ele!" Ela trabalhava nesta agência que ficava em frente a praça. O tal "moço comprido" ficou sentadinho lá esperando a moça sair. Ele fez o serviço e em vez de retornar para Lajes permaneceu sentado nesta praça esperando por ela. Depois daquele dia eles nunca mais se largaram, depois de seis meses eles se casaram."

A família de Maria Julia tinha tradições peculiares: o almoço era servido ao meio-dia em ponto e não podia faltar cabeça de porco na virada do ano. "Nada de comer frango na passagem de ano, pois o frango fica ciscando para trás; tínhamos que comer cabeça de porco para focinhar igual o bicho e ir para frente, assim a vida renderia e teria prosperidade naquele ano."

Pamela é visitada por uma outra lembrança: "Minha avó teve câncer e fez o tratamento em Florianópolis, então ela foi muitas vezes para lá e sabia onde tinha radar; quando a gente viajava - umas duas curvas antes - ela dizia ‘ôhi, radar na pista'. Avisava antes do GPS e era muito engraçado. Agora cada vez que a gente sabe onde tem um radar, imita: ‘ôhi, radar na pista'".

"Antes que eu descobrisse que estava grávida, ela fez aniversário - em janeiro e eu engravidei em dezembro – então, na virada do ano, perto do aniversário dela, ela disse ‘Ai, eu queria um bisneto, porque senão eu não irei conhecê-lo'; eu já estava grávida, mas não sabia; a gente riu e tal, acho que uns dez dias depois, eu confirmei. Quando ela faleceu, o meu filho tinha 2 meses; foi pouco tempo, mas graças a Deus, tivemos a possibilidade de ela o conhecer. Éramos muito parceiras."

Maria Julia contava várias histórias das experiências que ela tinha vivido. Filhos e netos gostavam muito de ouvir as coisas que ela contava, que ela tinha para ensinar. Era uma mulher de cabeça aberta; todos se beneficiavam de seus conselhos. Ela era uma avó bem presente, muito amada. Sempre que comprava algum mimo para os netos, ela demonstrava a preocupação de dar presentes parecidos, para não ter problema, para ninguém se sentir mais ou menos importante do que o outro.

"Eu vivi incontáveis momentos de alegria com a minha avó. E tive a felicidade de ter podido realizar meu casamento na casa dela. Esse pra mim é um momento de bastante felicidade. A gente estava sempre rindo, sempre se divertindo. A gente era muito feliz e era muito abençoado por estar sempre juntos em vários momentos felizes.", finaliza a neta Pamela.

Maria nasceu em São Joaquim (SC) e faleceu em Lages (SC), aos 74 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela neta de Maria, Pamela Monali Souza de Farias Maia de Oliveira. Este tributo foi apurado por Marina Gabriely, editado por Ana Macarini, revisado por Magaly Alves da Silva Martins e moderado por Ana Macarini em 1 de novembro de 2021.