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Rafael Lopes Martins da Rocha

1960 - 2020

Com seu jeito amoroso e alegre, assobiava alto para acordar os netos e poder brincar com eles.

Rafael, conhecido por muitos apenas como Lopes, foi motorista por longos anos. Transportou cargas de carvão e trabalhadores na ida e volta do trabalho. Mas quem o conhecia de perto sabia que o que ele transportava mesmo dentro de si era uma quantidade imensurável de amor e alegria.

Um dos exemplos do bom humor e da forma como levava a vida era sua atitude dirigindo os ônibus que levavam funcionários de uma empresa para o trabalho. O transporte ocorria bem cedo, por volta das 3h da madrugada. Quando percebia que algum dos passageiros aparentava cansaço, sempre inventava uma brincadeira procurando alegrar o embarque e animar os sonolentos.

A todos com quem conviveu, Rafael procurava repassar seus conhecimentos. Foi o que fez com a sobrinha Patrícia, que guarda uma enorme gratidão ao tio por ter transmitido a ela os ensinamentos sobre cuidados e malícias na direção.

Acalentava o sonho de ter uma casa no campo, e comprou um imóvel na zona rural em Santana de Pirapama. Na propriedade iniciou o cultivo de cana e mandioca. Por diversas vezes chegou a até demarcar o local onde seria erguida a construção.

Mesmo sem a casa construída, sempre tinha pouso em Santana de Pirapama, localidade onde vivem aparentados da esposa Maura. Essa era, aliás, uma das razões para que quisesse tanto ter sua casa na roça. Rafael tinha uma ótima relação com o sogro e um apreço enorme pela família de Maura. A recíproca era verdadeira e o que não faltava era lugar para que Rafael pudesse ficar hospedado quando ia até lá.

Para a filha Glauciene, o pai era tudo. Sempre presente, e morando no mesmo quarteirão da casa dela em Belo Horizonte, Rafael participava do cotidiano da filha e do genro Ernane. Com o filho Gleison tinha o mesmo cuidado, alegria e presença.

Em seu relato para esta homenagem, Ernane trouxe uma outra característica do sogro: era muito emotivo. Ele conta que o Rafael tinha muito orgulho dos filhos e sempre festejava as conquistas de cada um, assim como de outros membros da família. Na lembrança de Ernane veio uma foto do dia da formatura da esposa Glauciene. No retrato, Rafael enxuga as lágrimas de felicidade ao lado da filha Glauciene, recém-formada em Enfermagem.

Os netos Enric e Beatriz merecem um lugar especial nesta homenagem. Enric era uma das companhias frequentes de Rafael nas viagens a Santana do Pirapama. E, com apenas 3 anos, fez questão de comprar um chapéu igual ao que o avô usava quando estava na roça. Mesmo tão novinho demonstra ter lembranças do vovô, como quando lembrou das idas ao supermercado com ele.

Rafael era encarregado de cuidar dos netos todas as manhãs, no intervalo de tempo entre a saída para o trabalho do pai Ernane e a chegada da filha Glauciene dos plantões noturnos. Bem cedinho, enquanto Ernane ainda estava preparando o café, chegava Seu Rafael assobiando alto. Até que certa vez Ernane o repreendeu, dizendo que iria acordar as crianças que ainda dormiam. Rafael, bem humorado, devolveu: “é exatamente o que eu quero”.

Com a vizinhança de Belo Horizonte, as relações também eram ótimas. Qualquer um que precisasse de um pequeno reparo em casa já sabia. Era só pedir ao Rafael e ele estava sempre disposto a ajudar, logo resolvia tudo. Num canto no fundo da casa, era comum encontrar Rafael jogando truco com alguns deles. Entre os parceiros mais frequentes estavam Beto, Denilson, Geraldão e Edson.

A propósito, essas reuniões no quintal tinham um toque pessoal de Rafael. Ele mesmo fazia o mingau de milho, vários tipos de doces e fritava o torresminho. Durante o preparo, a prosa sobre os ocorridos da vida era o tempero especial. A trilha sonora, quase sempre, eram músicas caipiras. Ernane lembra que, em diversas ocasiões, estava em casa e Rafael chegava com pé-de-moleque ou seu delicioso doce de leite.

Uma das viagens prediletas de Rafael era para Barra das Canoas, distrito de sua terra natal, Cordisburgo (MG). Em muitos janeiros, seguia para lá, onde ajudava na preparação da Folia de Reis. Para os que não sabem, as folias são uma festa popular religiosa que celebra o encontro dos reis magos com o menino Jesus. Junto com os grupos de folia, Rafael ajudava a buscar doações para o preparo das guloseimas e a instalar gambiarras para iluminar os quintais. No dia da festa, acompanhava devoto a procissão, que, com cantos acompanhados por violas e pandeiros, seguia pelo lugarejo, parando de casa em casa. A festa virava a noite e era motivo de alegria para Rafael.

Sempre que podia, convidava parentes e amigos para conhecerem a casa do seu conterrâneo Guimarães Rosa. O imóvel que abrigou o renomado escritor mineiro hoje é um museu. E Rafael não perdia a oportunidade de convidar para uma visita ao local histórico.

Rafael segue vivo na lembrança de parentes e amigos como um homem alegre, humilde, de um coração cheio de amor e que amava servir as pessoas. O genro Ernane lembra que a árvore que sombreava o local onde ocorreu o sepultamento estava cheia de passarinhos, que cantavam alegres e fizeram com que ele se lembrasse dos momentos em que Rafael chegava a sua casa assobiando para acordar os netos. Naquele momento, disse para a esposa: "ele será eterno no canto dos passarinhos”.

Rafael nasceu em Cordisburgo (MG) e faleceu em Contagem (MG), aos 61 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo genro de Rafael, Ernane da Silva Fernandes. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Fernanda Ravagnani e moderado por Rayane Urani em 22 de julho de 2021.