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Raimunda Silva de Mendonça

1942 - 2021

Seu amor repleto de preocupação e cuidado, era o alicerce da família.

Numa manhã acordava Diquinha, na outra podia ser Potira. Também foi a "Abelha Rainha, a "Dona Encrenca" e a "Nega" de Luiz Fernando, seu marido por mais de sessenta anos.

A profusão de apelidos é uma representação da força da personalidade de Raimunda, matriarca e conselheira de toda a família Silva de Mendonça.

Paraense da ilha de Mosqueiro, Raimunda nasceu no meio de uma dúzia de irmãos. De compleição pequena, era chamada de Diquinha ou Nega pelos parentes e pelos amigos. Dica era filha de um pescador e de uma dona de casa e cresceu num lar humilde. Completou o segundo grau, em São Paulo.

As dificuldades, entretanto, não tiraram nem sua fé nem sua energia. Desde jovem, rogava a Deus e a Iemanjá por proteção quando saía para se divertir. Gostava muito de frequentar festas e a Discoteca Canecão, Clube Parazinho e Sr. Estevão, Mosqueiro (PA), onde dançava sem parar.

Numa dessas tardes, assistindo a uma partida de futebol, conheceu o Sargento do Exército que se tornaria seu companheiro da vida toda. "Meus pais brincavam que tinham três datas de casamento. Isso porque meu pai não podia se casar no cartório como Sargento Interno, porque não tinha a estabilidade exigida na época pelo exército. Então a primeira cerimônia foi na Igreja Católica, a segunda no cartório, quando já tinha estabilidade e a terceira na Umbanda. Faziam questão de comemorar as três", conta Luiz Clauber, o filho
caçula temporão.

As duas primeiras filhas, Ana Márcia e Celze Goreth, nasceram na cidade de Belém, mas a carreira militar do marido fez com que Dica, se mudasse para São Paulo, onde ficou grávida de Luiz Clauber. A distância geográfica não impedia, todavia, que ela se mantivesse como pilar da mãe e dos irmãos. Sempre ajudou a todos. "Aconselhava, orientava, acolhia e direcionava, do jeito dela, sempre preocupada com que ninguém sofresse ou se machucasse", pontua Clauber.

Na capital paulista, Diquinha fez de tudo um pouco. Foi costureira, doceira, vendeu batata e cebola e ministrou aulas de alfabetização no Sistema Mobral da igreja, enquanto o marido progredia na hierarquia militar e se formava em Pedagogia/História, pois o sonho dele era ser professor.

Na batalha para criar os três filhos, conseguiram comprar o primeiro imóvel. "A nossa casa era a mais simples da rua, mas foi a realização do sonho deles", recorda o filho.

As filhas se casaram, e alguns dos netos foram morar com Dica. A filha Goreth trabalhava e estudava, e quem cuidava da neta primogênita e afilhada, Maríssia, era a avó. A relação das duas era tão próxima que numa das comemorações do Dias das Mães na escolinha a neta preferiu entregar o presente que fez para a avó. Até os últimos dias de vida foi com a neta Marissia.

Filha de descendente indígena 'rezadeira' e parteira da ilha fluvial de Mosqueiro, Dica puxara os traços físicos maternos e, por isso, o neto Kauan lhe apelidou de Potira. "Minha mãe nunca renegou suas origens. Não praticava as tradições indígenas além de dançar o carimbó, merengue e de cantarolar canções numa língua que nós, os filhos, não conseguíamos identificar."

Quando o marido se aposentou, o casal começou a viajar, fazendo diversas excursões pelo Brasil, em especial Norte e Nordeste, voltadas para a terceira idade. Recentemente haviam comprado um apartamento em Aracaju, na qual passavam boa parte do ano, podendo ter assim uma qualidade de vida melhor. Voltavam para São Paulo apenas para se reunir à família nas festas de fim de ano.

Cozinhar era um dos prazeres de Raimunda. Preparava um feijão que ficou famoso na vizinhança e entre todos os amigos.

Potira gostava de estar rodeada pelas pessoas que amava. Perceptiva e prestativa, era mais de observar do que de falar. Ao sentir que alguém não estava bem, se recolhia num ritual de oração matinal. "A gente até tentava esconder as coisas dela, mas não adiantava, sempre foi sensitiva. Se parássemos um pouco para escutar tudo o que ela tinha para dizer, não teríamos quebrado tanto a cabeça. Dizia: 'Você não escuta a mãe, isso que dá!', ela ralhava", relata o filho.

Muito vaidosa, era, segundo o filho, a "freguesa número 1 das Casas Pernambucanas". Um de seus passatempos, além das compras, era o de completar cruzadinhas quando se sentava no sofá da sala, esticava os pés no pufe e esquecia das durezas da vida.

Em novembro de 2019, o casal fez o trecho Aracaju-São Paulo pela última vez. No início de 2020, houve uma reunião de família em que ficou decidido que os pais só retornariam para a capital sergipana depois de receberem a vacina. Porém Diquinha adoeceu antes de ser imunizada.

Clauber relata o apego que o neto Kauan tinha à avó. Dele, ouviu: "Tio, era a vó que acordava cedo para fazer meu café, que deixava minha janta pronta e me esperava chegar do trabalho, que cuidava de mim e das minhas coisas”. Também, com a neta Larissa. Rezava sempre pelo sucesso dela. Ficou muito angustiada quando a neta anunciou que iria morar fora do Brasil.

O orgulho da minha mãe, foi ver os três filhos e os três netos, terem se graduados e pós graduados.
Disse ela ao meu pai, “Cumprimos nossa obrigação.!”

Sim, Raimunda era sinônimo de cuidado e de perseverança. "Missão cumprida na Terra e uma nova jornada no Paraíso. Meu espelho, Diquinha para todos, minha mãe, agora descanse. Os anjos, os santos, os orixás e os espíritos de luz estão ao seu lado no céu e eu sigo aqui, contando a sua história. Eu te amei e vou te amar por toda minha vida!"

Raimunda nasceu em Mosqueiro (PA) e faleceu em São Paulo (SP), aos 78 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo filho de Raimunda, Luiz Clauber Silva de Mendonça. Este tributo foi apurado por Rafaella Moura Teixeira, editado por Luciana Assunção, revisado por Magaly Alves da Silva Martins e Fernanda Ravagnani e moderado por Rayane Urani em 21 de fevereiro de 2022.