1979 - 2020
Bisneto de africanos escravizados, quilombola, foi mestre de inúmeros meninos em situação de vulnerabilidade social.
Carinhosamente chamado de Neguinho, Raimundo foi e sempre será para a família o maior exemplo de ser humano, filho, irmão, esposo, pai, padrinho, amigo, patrão... Segundo a esposa Edicleise, foi, também, exemplo de honestidade, sinceridade, fraternidade, bondade, dedicação e “muitas outras coisas que se listadas correm o risco de não caberem aqui...”, como ela diz.
Nascido no interior do Pará, no território Quilombola de Piratuba, o quarto dos nove filhos de Dona Sinhara (Maria do Livramento) teve uma infância difícil, com muitas privações. Também viveu muitas alegrias, que só quem foi menino de interior conhece: tomar banho de chuva com os amigos, jogar bola, brincar de pira, tomar banho de igarapé, comer fruta no pé, pescar e caçar com o pai, o “seu” Braga, irmãos, primos e amigos.
“Aos 11 anos de idade, a mãe, com muito sofrimento — com o entendimento que só uma mãe sábia pode ter —, levou-o para morar com uma família na cidade, na ânsia de que seu filho tivesse mais oportunidades do que dentro do quilombo. Quem sabe estudar, trabalhar... Ele, então, assustado, cheio de incertezas e não querendo ficar, chegou à cidade de Abaetetuba para morar com a família de Reinaldo Constantino (carinhosamente chamado de Pernambuco), que além dele tinha Deusa, sua esposa, e as três filhas, Danúbia, Roseane (Tetê) e Renatinha”, conta Edicleise.
Caiu de paraquedas em uma família onde as crianças eram todas meninas e logo foi acolhido como filho, como irmão. “Era um menino obediente, educado e de bom coração. Assim, ele passou a ter duas famílias. E eu tive a sorte de ter duas sogras”, destaca. Seu Reinaldo, pernambucano, eletricista de automóveis, amorosamente ensinou a profissão ao filho, que logo aprendeu e, com simpatia e presteza, conquistava os clientes da oficina.
Aos 19 anos, Raimundo foi trabalhar em uma filial da oficina no município vizinho, Moju. De sorriso fácil, logo fez uma grande rede de amigos, com quem viveu grandes histórias, as quais contava por horas, rindo e fazendo rir quem ouvia. “Seu sorriso era inigualável... Que sorriso gostoso e acolhedor”, revive a companheira da vida.
“No dia 12 de outubro do ano de 1999, nos vimos pela primeira vez no Balneário Levi. Tínhamos amigos em comum, que logo nos apresentaram. Foi uma tarde muito agradável de boas risadas, banho de igarapé e conversa. Depois, passamos a nos ver com mais frequência na praça central e, após dois meses, começamos a namorar, em dezembro de 1999, quando ele tomou coragem e foi a minha casa pedir permissão aos meus pais, muito tenso e nervoso”. O namoro durou um ano e quatro meses. Em março de 2001, o casal passou a viver em comunhão. “Ele queria casar, eu nunca gostei de estar em evidência; ele, oposto a mim, amava comemorações e festas.”
Dessa relação nasceram Eduarda Rafaely, “linda, saudável, amada, desejada, uma menina forte, independente, dona de si, cheia de atitude”, e o caçula Rafael, de personalidade diferente de sua irmã, mais amoroso, carinhoso, agarrado aos pais e igualmente lindo, saudável amado e desejado.
Ao longo de quase vinte e um anos em que viveram um ao lado do outro, enfrentaram e superaram problemas e sempre optaram por “consertar em vez de jogar fora tudo de maravilhoso que havíamos e ainda estávamos construindo”.
“Muitas coisas aconteceram ao longo desse caminho, começamos nosso próprio negócio, construímos a casa de nossas mães, antes mesmo da nossa, construímos a nossa casa, perdemos minha vozinha em 2010, perdemos sua mãe em 2017, mas também festejamos muito, tudo, aniversário de cada membro da família, Natal, Réveillon, Dia das Mães, Dia dos Pais, férias... Ah, as férias... Era sempre um momento muito esperado por todos nós, era praia na certa, como ele amava a praia”, lembra a companheira.
De tudo ele fazia um pouco, hidráulica, eletricidade predial, pintura, pesca, trilha, futebol, ciclismo; era até um pouco humorista (amava contar piadas) e também eletricista de automóveis como poucos. De uma inteligência profissional admirável para quem pouco estudou, sempre tinha uma solução rápida e prática para tudo e também uma palavra amiga a quem precisasse. Não havia um cliente que não se tornasse amigo de infância depois de algumas boas histórias contadas durante a realização de um serviço. Por conta do seu coração bondoso, levou muito prejuízo de pessoas mal-intencionadas.
Na oficina, colocou em prática mais uma vocação, a de propulsor de cidadania. “Sempre se dispôs e preferia aceitar meninos em vulnerabilidade social como aprendizes, cobrava assiduidade na escola, conversava e se responsabilizava com os pais dos garotos em transformá-los em profissionais”. Pela oficina de Raimundo passaram muitos meninos... Fábio, Rosivaldo, Rogério, Alisson, Jhonata, Maciel, Rafael, Elias, Elivelton, Alex, Leandro, Manoel Divino, Renato, Jhone, Paulo Henrique, Jander, todos exercendo o ofício e vivendo da profissão que aprenderam com o “Patrão”, como eles o chamavam.
Passaram nas mãos dele muitos outros que não trilharam o caminho da profissão, mas que buscaram outras formas de ganhar a vida e que ainda hoje se lembram dele com carinho e muito respeito.
“Com ele um churrasco ou peixe no 'avoado' (forma de comer o peixe assado na brasa com farinha e pimenta) podia surgir do nada. Sempre quis e teve uma mesa grande, cheia de fartura e rodeada de amigos e da família. Em todos esses anos ao lado dele, poucas foram as vezes em que fizemos alguma refeição somente nós quatro. Confesso que até estranhávamos quando isso acontecia”, ressalta a esposa.
Edicleise destaca que não dá pra falar de Neguinho sem lembrar o seu esporte favorito, a pescaria. Todos os anos, era obrigatória a ida ao Rio Capim, ao Alto Rio Moju, ao Lago de Tucuruí, para a abertura da pesca do mapará nos rios de Cametá e também as pescarias esporádicas no nosso lindo rio Moju. “Como é difícil olhar para todos os utensílios de pesca deixados por ele... voadeira, remo, motor, malhadeira, espinhel, caixas e caixas de anzóis, chumbada, linha, boias, molinetes, varas de pesca, iscas (uma para cada situação, em suas palavras...)”.
Parceiro de pescaria podia ser qualquer um, desde que quisesse pescar. “Eu, os amigos, os compadres, o filho, os amigos do filho, o pai, os cunhados, os irmão e primos, os borracheiros que eram nossos vizinhos de oficina. Quantas lembranças boas.”
“Ele queria fazer parte de tudo, do Carnaval, do Bloco do Só Alegria (bloco do sujo), do Círio do Divino Espírito Santo, do RE x PA (jogo revanche entre os times do Remo e Paysandu do comercio local), da Cavalgada Amigos de Moju (dos quais ele recebeu uma linda homenagem em 2021), da Caminhada de Nossa Senhora de Nazaré, onde ele animava, incentivava e ajudava cada companheiro de trajeto. Ah... em cada linha que escrevo percebo o quanto ele será inesquecível para mim e para todos que o cercavam”.
"O filho cuidadoso e responsável com seus pais, o marido amoroso, companheiro, parceiro, conciliador, apoiador dos meus sonhos de estudar e me formar professora (papel o qual ele cumpriu com maestria), o pai dedicado e preocupado, sempre educou sem levantar a mão para os filhos e com isso conquistou respeito, carinho, amor e admiração de Eduarda Rafaely e Rafael, o tio amado por seus sobrinhos, o amigo leal para todas as horas." E o que dizer dos seis afilhados do casal (Jorginho, Gabriel, Comandante Willian, Paulinho, Marjorie e Duda), “confiados a nós por seus pais, quanta responsabilidade assumida de coração aberto e cheio de amor”. Assim ele era. Ficava bravo? Sim. O que o tirava do sério eram maus-tratos a pessoas ou animais, injustiças e mentiras.
“Definir nosso amado Neguinho é impossível, e sempre nos lembraremos dele como uma pessoa extremamente respeitadora, confiante, cheia de fé, de vontade de vencer na vida, com uma energia que parecia nunca se acabar”, recorda com saudade a esposa.
“Fomos muito felizes ao seu lado e aprendemos muito com suas vivências e experiências. Somos gratos a Deus por nos permitir estar com ele até o fim, amando-o, respeitando-o e, principalmente, admirando-o. Raimundo, nosso Neguinho, foi nosso maior exemplo.”
Raimundo nasceu em Moju (PA) e faleceu em Belém (PA), aos 41 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela esposa de Raimundo, Edicleise Fonseca de Andrade. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Patrícia Coelho, revisado por Fernanda Ravagnani e moderado por Ana Macarini em 7 de fevereiro de 2022.