1931 - 2020
Era só tocar "Sentimental" que logo ele convidava a esposa para dançar.
Especial, esse é o adjetivo que melhor representa Raimundo. Não há ninguém que passou pela vida de Sodico, como era carinhosamente conhecido, que não tenha sido contagiado pela sua alegria, seu jeito doce, sua generosidade e seu alto astral. Todos que com ele tiveram o prazer de conviver, levam consigo uma história, o jeito de ver e amar a vida, uma música que o lembre.
Nascido em Taquaraçu, veio ainda pequeno para Belo Horizonte e cresceu no Bairro da Serra. Aos nove anos de idade, perdeu o pai e se tornou o "homem da casa". Sustentava a mãe e os quatro irmãos entregando pão de carroça na região central da capital mineira. Nunca contava as histórias do seu passado com amargura ou tristeza, pelo contrário, estampava um sorriso no rosto, com os olhos brilhando de orgulho por suas conquistas e sempre muito agradecido a Deus.
Conheceu o grande amor da sua vida, Nenzinha, bem jovem, aos vinte anos. Os dois viviam no mesmo Bairro e ficaram amigos, quando ela tinha apenas quatorze anos. Mais tarde, namoraram e quando ela completou dezoito anos, contraíram matrimônio no dia vinte e quatro de Setembro. Uma das datas preferidas de Raimundo. A união entre os dois durou quase sessenta e cinco anos, até a sua partida.
Do amor dos dois vieram oito filhos: Marco Tulio, Silvania, Silvia, Simone, Marco Antônio, Simeri e Paulo. Quando Paulo já estava com sete anos e o casal pensava que não teria mais filhos, a vida lhes presentou com mais uma filha, Syntia, que completou a família.
Dico, como a amada o chamava, e Nenzinha eram a inspiração de como viver em casal. Apesar das diferenças e das dificuldades que enfrentaram, superaram uma a uma das adversidades com muito amor e companheirismo. Os dois se equilibravam: ela, razão. Ele, coração.
Para Raimundo, a família era a base de tudo: era amoroso também cuidadoso com os filhos e os netos, fazendo questão de estar constantemente presente nos momentos mais importantes da vida de cada um. Recebeu deles o apelido carinhoso de 'bom velhinho', por tamanha bondade. Era o tio preferido dos sobrinhos de sua esposa.
Dotado de uma generosidade ímpar: aceitava cada um com seus defeitos e qualidades. Jamais criticava ou tentava mudar alguém. Sempre discreto, era incapaz de tecer algum comentário desagradável ou agressivo. Se pudesse ajudar nunca negava, mas jamais atrapalhava. Demonstrava seu amor com tanta doçura, como poucos. Obstinado, se colocasse uma coisa na cabeça era difícil de tirar. Contagiava todos ao seu redor, não havia ninguém que não gostasse dele ou que ele não gostasse. Ele era uma unanimidade!
Divertido, tinha habitualmente uma pérola na ponta da língua. Adorava dizer que a comida estava ruim, entretanto que repetiria apenas para agradar ao anfitrião. Mesmo no café da manhã, dizia que pão com manteiga era coisa de velho fraco, preferia mesmo era as "coisas substanciosas", como dizia ele: um bom pão com carne ou linguiça com Coca-Cola logo pela manhã.
Ao longo da vida, trabalhou em diversos ofícios, contudo tinha como paixão a marcenaria: fazia lindas peças de decoração e utilidades, como porta-bíblias, descanso para panelas, carros de boi para apoio de plantas, porta-guardanapos, bandeja para bolo, entre outros adereços.
Por vezes, até esquecia a hora do almoço quando estava na oficina, sempre com o rádio ligado na Itatiaia. Todos os filhos têm de recordação uma cadeira, estilo espreguiçadeira, feita por ele. "Minha tia Syntia, tudo que via em madeira pedia para que ele fizesse.
Certa vez, a pedido dela, ele reproduziu em madeira um carrinho de pipocas e doces em tamanho real para a festa de aniversário de uma das netas. Ficou tão bonito que precisou fazer outro para encomenda. Ele também fez para ela uma mesa de oito lugares que é uma verdadeira relíquia por lá. Todo mundo tem o maior xodó com a tal mesa", conta a neta Michelle.
Além de sua família, Sodico tinha um outro grande amor: o Clube Atlético Mineiro. Possuía uma paixão explícita pelo Galo, apresentando o Mineirão para todos os filhos e para quase todos os netos. Tinha orgulho em dizer que o Time não tinha torcida modinha não, era torcida raiz. Gostava de sofrer, pois as conquistas assim eram muito mais saborosas.
Tinha como hábito palpitar nos placares dos jogos e até no número de pagantes de uma partida. "Meu avô tinha um termo muito engraçado que até hoje repetimos quando vamos ao estádio. Ele dizia: "O Galo hoje vai dar é 'Shor'!"
Na festa de Campeão Brasileiro de 2021, nós comemoramos por ele e com ele. Fizemos uma linda homenagem que correu as redes sociais, pelo seu grande ídolo, o rei Dadá Maravilha. Foi lindo e mágico! Tenho certeza que recebeu com carinho em forma de energia e oração onde quer que ele esteja", recorda a neta.
Gostava de casa cheia, sua felicidade era reunir toda a família em encontros muito animados, para tomar uma cervejinha gelada acompanhada de um bom tira-gosto e sempre ouvindo música. Uma de suas últimas aquisições foi uma Jukebox, onde as músicas são selecionadas por fichas. Nos fins de semana, mal ele abria os olhos e a máquina já estava ligada. Ouvia de tudo.
Pé de valsa, saía puxando todo mundo para dançar: a música ia tocando e lá estava ele dançando. "Dentre as diversas músicas que gostava, existiam duas que eram especiais. A primeira é "Sentimental" de Altemar Dutra, em que ele geralmente tirava minha avó para dançar quando tocava; e a segunda é "Naquela Mesa" de Sérgio Bitencourt. Dizia que em sua ausência era para ouvirmos essa música e lembrarmos dele. Minha prima até tatuou um trecho da música que diz: 'Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim'. Naquela mesa sempre estará faltando ele com a saudade que está doendo muito em todos nós.
Viveu e aproveitou a vida como poucos. Apesar da ausência física, sua presença continua e perpetuará até a eternidade. Estará nas próximas gerações que torcerão pelo Galão da Massa com a mesma paixão, nas músicas que ele adorava dançar, nas pérolas e no seu jeito único especial. É fato. Todo mundo que passou pela vida de Sodico levou um pouquinho dele e hoje ele faz morada em cada um desses corações. Como ele mesmo dizia: 'só se leva da vida a vida que se leva'.
Raimundo nasceu em Taquaraçu de Minas (MG) e faleceu em Belo Horizonte (MG), aos 89 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pela neta e pela filha de Raimundo, Michelle Cristina Homem de Castro e Syntia Karla Homem Fernandes. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Andressa Vieira, revisado por Magaly Alves da Silva Martins e moderado por Rayane Urani em 14 de fevereiro de 2022.