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Reinaldo Campos Ribeiro

1967 - 2021

Quando contava alguma coisa, ia logo aumentando tudo. E de tão absurda, a narrativa ficava muito engraçada.

Essa história começa em Vitória da Conquista e termina em São Paulo. Uma trajetória que, através do tempo, foi tecendo afetos de muitas maneiras, graças ao olhar sempre atento, generoso e cuidadoso de Reinaldo sobre tudo o que acontecia a sua volta. Moreno alto e forte, dono de um sorriso aberto que enfeitava seu rosto, ele marcou a existência de muitos que tiveram o prazer de conhecê-lo.

Da infância simples e regrada na Bahia, a filha Tamires pouco sabe contar. O certo é que o filho de Seu Genésio e Dona Maria, juntamente com os 11 irmãos, não teve muito tempo para desfrutar do universo infantil, pois precisava ajudar em casa. A escola mais próxima ficava a três quilômetros e a soma da urgência em ajudar no orçamento doméstico com a distância entre a casa e a escola, afastaram Reinaldo da possibilidade de estudar. Com muito esforço, ele conseguiu ser alfabetizado e entrar para o mundo das letras.

Ainda muito novo, na trilha aberta por Carmelita, a irmã mais velha, migrou para a capital paulista em busca do sonho de uma vida melhor. Contando com ajuda de parentes que já moravam em São Paulo, os dois trabalhavam e mandavam boa parte do dinheiro para os pais na Bahia.

A relação entre os dois irmãos permaneceu intensa durante toda a vida. Apesar do ritmo acelerado da rotina de ambos, o tempo foi consolidando uma enorme parceria e cumplicidade entre os dois. Não seria exagero dizer que Carmelita tenha sido a grande e melhor amiga de Reinaldo. Um podia contar com o outro em qualquer situação.

Dos outros irmãos, Reinaldo também não se esquecia. Generosamente, abraçou as famílias de todos os irmãos e todos os sobrinhos que, em retribuição, o amaram com amor verdadeiro. Um fato acontecido pouco tempo depois que Reinaldo começou a trabalhar merece uma menção especial, pois demonstra o seu modo de ver a vida. Com um de seus primeiros salários ele comprou um tênis e deu de presente para Creonice, ainda pequenina. Ele sabia muito bem o que era não ter um calçado para ir à escola e decidiu que os pés da irmã mereciam ter esse cuidado.

Ao longo da vida, graças a seu olhar generoso e cuidadoso, Reinaldo foi sendo considerado na família como um segundo pai. Era rígido nos princípios e sempre dizia a todos que era fundamental fazer o certo e se afastar do que fosse errado. E que quem assim agisse poderia contar com ele.

Mas voltemos à linha do tempo... Reinaldo trabalhava como vigilante numa empresa paulista durante a noite. Foi lá que conheceu Telma, a moça da limpeza, com quem conviveu durante vinte e oito anos.

Antes de contar sobre os frutos desse amor, é importante dizer que Reinaldo chegava em casa às seis da manhã, dormia até as dez e ia para o seu salão de beleza, onde praticava seu segundo ofício, com muita dedicação e o costumeiro cuidado com tudo que fazia. Na leitura da filha mais velha, Tamires, essa segunda atividade, para além de ser uma fonte de complementação de renda, era também “um momento de lazer para meu pai. Ele gostava muito de cortar o cabelo das pessoas e da possibilidade de interagir e conhecer gente nova". No estabelecimento, localizado no bairro Parque Turiguara, foram muitas as vezes em que caridosamente cuidou de pessoas da comunidade carente que não tinham dinheiro para pagar um corte de cabelo ou fazer a barba.

Foi também na porta do salão que um fato muito bonito aconteceu. Numa bela feita, passou por lá um vendedor de bananas. Empurrando um carrinho de mão ele circulava pela comunidade de Turiguara vendendo suas bananas para ganhar algum trocado. E na imagem do homem com seu carrinho, Reinaldo viu possibilidades de um futuro melhor e acreditou nele. Sem nunca ter visto a pessoa, Reinaldo conversou com ele. Explicou que era preciso ter mais variedade de frutas, pois assim poderia vender mais e ganhar um pouco mais de dinheiro. O rapaz explicou que até concordava, mas não tinha como fazer isso, pois a urgência da vida não permitia que ele guardasse algum dinheiro para comprar outras frutas. Reinaldo, então, emprestou um valor significativo ao homem. Disse a ele que cuidasse do dinheiro para que conseguisse comprar mais frutas, vender e manter o negócio. O resultado foi que, com muito empenho, o homem pagou o empréstimo e abriu uma quitanda na região.

Cabe ressaltar também que Reinaldo adotava a mesma postura na empresa onde trabalhava como vigilante. Depois de seu falecimento a família ficou sabendo de diversas situações em que ele ajudou financeiramente colegas de trabalho. Um deles relatou que deve a Reinaldo o fato de ter uma casa. É que juntos encontraram um meio para que Reinaldo ajudasse na compra de materiais para a obra. Por essa e outras, muitos colegas de trabalho fizeram questão de dizer que ele era dono de um coração muito generoso.

Voltemos, então, ao relacionamento de Reinaldo e Telma. Quando ele conheceu a moça, nascida em Água Branca, no sertão de Alagoas, ela estava grávida de uma menina. Seduzidos pelo que viam um no outro, decidiram se casar. Antes, foi necessária uma conversa com a irmã de Telma, Dona Edite. Foi ela quem explicou a situação aos pais de Telma, que moravam em Alagoas. Convencidos de que a intenção de se casar era sincera, os pais puseram as bênçãos no amor nordestino que acontecia em São Paulo.

Pouco tempo depois nasceu Tamires, que, sem nenhuma dúvida, foi assumida por Reinaldo como filha. Ao longo da vida, Tamires, juntamente com Gabriela e Tainá, desfrutou intensamente da convivência do pai que a vida lhe deu.

Ela lembra com carinho do esforço de Reinaldo para dar material escolar a ela e à irmã Tainá. O pai dizia que não queria que acontecesse com elas o mesmo que ele precisou viver. E assim, dentro de suas possibilidades, buscava comprar o que de melhor era possível.

Tamires, que também teve a Covid-19 e se recuperou, guarda com muito carinho o momento do reencontro com Reinaldo depois que ela saiu do hospital. Ele chegou com um olhar assustado e necessitado de ver a filha para constatar que tudo de fato estava bem. Depois daquele olhar, que sintetiza todo o cuidado com que ele sempre buscou tratar a todos, Reinaldo deu um abraço apertado na filha e ficou aliviado.

Gabriela, a outra filha, durante um bom tempo, teve pouco contato com o pai. Mas quando a vida os reaproximou, era só carinho e cuidado. Tamires conta que a situação fez com que Reinaldo amadurecesse muito, pois precisou aprender muitas coisas para transitar pela situação. “A Gabriela ensinou muitas coisas para o pai”, complementa Tamires. Muito parecida com Reinaldo, no jeito de ser e fisicamente, Gabriela é tímida e tem o sorriso e as sobrancelhas muito parecidas com as do pai. Dele herdou também a doçura de seu modo de agir. Na geladeira da casa de Reinaldo não faltava a cerveja da marca que a filha gostava. Nas visitas de Gabriela ele sempre abria uma garrafa e oferecia a ela.

Nos aniversários da filha, Reinaldo fazia questão de preparar presentes. O objetivo dele era sempre encontrar um modo de surpreender Gabriela. Quando a data ia se aproximando, ele começava a planejar a montagem das cestas de chocolates e guloseimas. Na Páscoa, não podia faltar o ovo de chocolate da Gabriela.

Por último veio Tainá, a filha que, como caçula, sempre foi cercada de mimos. Os dois se entendiam muito bem e Reinaldo não poupava esforços para agradá-la. Um hábito dele era lavar e picar frutas que levava para ela ainda na cama. Esse foi um jeito que ele encontrou para que a filha sempre comesse frutas. O mesmo aconteceu durante o tempo em que Tainá trabalhou em "home office" durante a pandemia. Cachos de uva e pedaços de melancia sempre estavam chegando à mesa dela.

No comum dos dias, o que Reinaldo mais queria era ficar em casa, pois, como conta Tamires, emocionada, “a gente só queria estar juntos quando veio a Covid-19”. Entre os momentos preciosos para Reinaldo estavam os churrascos que aconteciam num final de semana e no outro também. Se alguma festa coincidisse com dia de trabalho dele, ninguém se aborrecia com a mudança de data para que Reinaldo pudesse estar presente.

Apesar de ser bastante reservado e contido, em muitos momentos Reinaldo resolvia fazer graça. Nessas horas, o habitual sorriso dele transforma-se em risada, que chegava a ser escandalosa. Uma de suas maneiras de fazer rir estava no hábito de contar as coisas aumentando muito o que de fato acontecera. Se contasse que tinha ido a algum lugar, dizia que estava muito cheio e que “tinha umas mil pessoas”, por exemplo. Todo mundo levava os absurdos que narrava na brincadeira e a gargalhada era geral.

As confraternizações eram momento “de assar uma carninha e jogar dominó”, explica Tamires. E no passar de sábados e domingos, todos se divertiam, colocavam as conversas sobre o cotidiano em dia. Uma marca dos churrascos eram as kaftas (churrasquinhos preparados com carne moída). E um detalhe sobre a preparação das kaftas abre a possibilidade de contar sobre outra característica de Reinaldo: a inventividade e habilidade para trabalhos manuais e solução de problemas de manutenção da casa. Foi ele quem fez a engenhoca usada para preparar a iguaria de carne moída. E, orgulhoso, mostrava para quem quisesse ver o resultado de seu trabalho, juntamente com o sabor do tempero dos churrasquinhos, preparados por Tamires. “O pai não gostava de fazer nada 'mais ou menos'. Com ele tudo tinha que ser bem feito”, Tamires faz questão de pontuar.

Assim, tão logo surgisse uma demanda, ele rapidamente buscava pesquisar sobre o assunto na internet e, com uma facilidade enorme, aprendia a fazer o que fosse necessário. Certa vez, numa reforma da casa, aprendeu a fazer "grafiato" para dar acabamento em uma parede. O mesmo acontecia nas casas de outros parentes que, quando precisavam realizar alguma manutenção, sabiam que era só chamar o Reinaldo. E ele generosamente resolvia as questões usando suas habilidades.

No noivado de Tamires uma das sensações da festa foi o suco de melancia servido dentro da própria fruta. Ele fez o que foi preciso até conseguir adaptar um bico com torneira na casca de uma melancia bem grande, onde o suco era armazenado para que os convidados se servissem.

Ele também colocou a mão na massa na construção da casa da família. Com muita persistência e paciência, Reinaldo e Telma conseguiram realizar o sonho de ter uma morada que, ao final da obra, tornou-se o palco dos churrascos e confraternizações da família. Sabendo que o salário que ganhavam não seria suficiente, decidiram vender roupas para juntar dinheiro e ir fazendo a casa. Os dois iam até a região do Brás, na capital paulista, e compravam as peças que comercializavam com algum lucro. Muitas vezes, Reinaldo ficava horas procurando um modelo específico de roupa, encomendado por algum cliente.

Reinaldo permanece vivo na decisão da família de seguir presenteando Gabriela com cestas de chocolates e doces; no assar da picanha na brasa, um dos cortes preferidos dele; na engenhoca construída por ele para preparar suas kaftas, que ainda hoje está na cozinha da casa da família. Nas narrativas exageradas de Tamires, que relembram o hábito do pai de aumentar tudo. Nas atitudes de generosidade e cuidado, praticadas pelos familiares, depois do aprendizado dessas qualidades no convívio com ele.

Reinaldo nasceu em Vitória da Conquista (BA) e faleceu em Itapevi (SP), aos 53 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Reinaldo, Tamires Santos Ribeiro. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 29 de agosto de 2022.