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Roberto de Sousa

1948 - 2020

Tinha sempre algo para doar: alimentos, a própria casa para animais abandonados e amor para a família e amigos.

O barco não pode frear!

Nada no mundo foi mais importante e valorizado por ele, como a vida.

Homem de garra, guerreou, desde seu nascimento até seu desencarne.

Foram 30 dias de luta contra a Covid-19, no CTI, sem fraqueza, sem frear o barco. No entanto, decidiu que precisava partir e olhar por nós, lá de cima.

Coração mais empático e bondoso não houve.

Esses foram seus maiores legados: união, empatia e compaixão; tudo isso, sem deixar que o motor que nos movimenta pare, sem deixar que o barco pare, pois a morte não é o fim, mas sim a continuação da jornada, em outro espaço.

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Quando Roberto ficou viúvo pela primeira vez, a filha mais velha tinha 12 anos. Ele, 34. Mas ele foi tudo para as meninas. Sílvia, Juliana e Ana Flávia viveram por muitos anos só com o pai. Apesar do duro golpe de ver partir o amor da vida dele, Marina, esse homem exerceu a paternidade com alegria.

Sílvia conta que ela, as irmãs e o pai eram muito felizes. Na infância e adolescência, um dos programas era curtir o Carnaval, a expressão máxima de felicidade no país.

Roberto contava com a ajuda de Dalva, sua madrasta, para os cuidados diários com as meninas. As garotas chamavam-na de tia. Durante toda vida, as três foram muito gratas a essa senhora e até hoje fazem de tudo por ela, que é vizinha de Sílvia.

Em Batatais, sua terra natal, Roberto fundou o primeiro varejão da cidade. A parceira de trabalho dele era Marina, a esposa. Era tão batalhadora quanto o marido, que a definia como "um pé de boi" para a lida.

Juntos, eles fizeram história no interior paulista. Além do pioneirismo com o empreendimento, a solidariedade era uma característica dos dois. Ajudavam a muitas instituições da cidade e a pessoas que precisassem de alimentos. No domingo, os preços eram simbólicos para que todos pudessem ter a mesa farta, principalmente quem mais precisasse.

Auxiliou o amigo João por muitos anos. Beto ajudava na APAE e conseguiu uma vaga de meio período para ele na instituição. Na outra parte do dia, ele trabalhava no varejão, onde selecionava frutas. Lá, o seu Beto e o pessoal do varejão ensinavam-no a ir ao banheiro, conversar e outras coisas. Também levava o João para o rancho.

Roberto viu Marina partir em 84 e continuou com o empreendimento na cidade com as mesmas boas ações. Mas, em 1996, a situação ficou mais difícil. "Com a coragem que a vida quer da gente", Roberto vendeu tudo, comprou uma caminhonete e partiu para o estado do Rio de Janeiro apenas com a fé de que as portas iriam se abrir.

Um tempo depois, no Rio, conheceu Gilmarques da Silva, se tornou sócio dele. Abriram um mercado que hoje é grande, tem cerca de 100 funcionários. Nesta empresa, ele continuou a ser solidário, doou toneladas de alimentos.

Os funcionários dizem que ele foi um professor. Quando ficou doente, fizeram camisetas e canecas em apoio ao Roberto. Depois da partida, confeccionaram capinhas de celular com a inscrição "Roberto Eterno".

No varejão, tinha o apoio de uma filha, Juliana, e do genro Renato. Um de seus hábitos era tirar um cochilo após o almoço no sofá da firma. Sempre muito junto das filhas, com os netos - Marina, Lucas, Gabriel e Gabriela - ele também teve uma relação bem próxima e afetuosa. Também foi um bisavó coruja para Bernardo, com quem conviveu quase um ano.

Amava a música "Índia", a qual tornou-se uma declaração de amor para a neta Gabi, que tinha algumas características da moça da canção.

Todos os netos ganhavam um carro do avô quando completavam 18 anos. Ele era muito presente na vida de todos eles, mas faltou ao batizado de Gabriela por motivos de força maior. No dia anterior, Beto aproveitou a ida a Batatais para ir a uma festa em um sítio. Bebeu bastante. Antes do fim da festa, foi para dentro de um carro dormir. Quando acordou, Roberto estava sem a dentadura. Porém, ele não se lembrava em qual momento havia perdido a prótese. Fato foi que sem os dentes ele não compareceu ao batizado. A dentadura só apareceu horas depois do rito religioso, a proprietária do carro nem sabia de quem era.

Gostava muito de animais, tinha dois cachorros e 15 gatos, pegava na rua e levava pra casa. Contraiu toxoplasmose, o que gerou preocupação nas filhas, pois ele já havia feito uma cirurgia de catarata. Elas queriam que ele não tivesse gatos mais, porém, era a paixão dele, não concordou e seguiu cuidando dos felinos de rua.

Roberto era amor para a família, colaboradores, amigos e animais. Muito do que semeou continua a germinar aqui.

Roberto nasceu em Batatais (SP) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 71 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta e pela filha de Roberto, Gabriela Trindade e Silvia Cristina. Este texto foi apurado e escrito por Gabriela Trindade e Talita Camargos, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 16 de novembro de 2020.