Sobre o Inumeráveis

Ronaldo de Almeida

1964 - 2021

Não gostava de descanso, vivia procurando alguma coisa para consertar ou alguém para ajudar.

Criado no interior de São Paulo, ele era o filho do meio de um casal de agricultores, tendo um irmão mais velho e uma irmã mais nova. Da infância lembrava-se de passar o dia sob a sombra de uma árvore enquanto os pais trabalhavam na lavoura. Quando foi crescendo tinha a tarefa de levar a marmita para os pais no campo e de cuidar da casa junto com os irmãos. “Engraçado era ele contar que, como eram responsáveis por manter a casa limpa, brincavam o dia todo e, quando viam que o sol começava a se pôr, corriam para limpar a casa. E quando meus avós chegavam e viam que o chão ainda estava molhado ou a cera ainda fresca, diziam que não tinha feito calor suficiente para secar. Minha avó ficava brava e meu vô sempre amenizava a situação”, lembra a filha Kamilla sobre as histórias de infância contadas pelo pai.

A infância vivida na simplicidade era recordada com uma palavra: felicidade! Brincava ao ar livre, nadava nos rios em torno de casa, pescava e aprontava muitas brincadeiras com os irmãos. Como toda criança, amava comer doces. Os doces mais gostosos eram presentes de um tio que morava na cidade; para agradar aos sobrinhos, sempre levava alguns quando ia visitá-los. A farra do açúcar era tamanha que a criançada costumava dizer que após as visitas do tio saiam lombrigas até pelo nariz de tanto doce que comiam.

Da transição da infância para a idade adulta, lá mesmo no campo, lembrava-se de um fantasma que ele e o irmão costumavam ver sempre em um mesmo lugar: na janela de seu quarto. O fantasma vestido todo de preto e com dois grandes e assustadores olhos brancos povoaram a memória de Ronaldo até a vida adulta, a ponto de contar a história às filhas, que evitam visitar esse quarto, que existe até hoje.

A esposa o conheceu em uma festa, mas o namoro só teve início depois que ela se tornou sua vizinha. Passaram um tempinho papeando, um de cada lado do muro, até que ele se encorajou a pedir a moça em namoro. O casamento foi em 1985 depois de uns dois anos de namoro. A casa que abrigaria a nova família foi construída por ele e por seu pai. Ali nasceu a filha mais velha, Kamilla, em 1988. Em 1996, filhas gêmeas completaram a família, com a qual Ronaldo tanto sonhou e que lhe dava tanto orgulho. Era um pai excelente, muitas vezes até bobo com as filhas; as broncas eram presentes, porém logo após ele estava “se desculpando” com cócegas e piadas, dizendo o quanto era penoso pra ele ter que dar castigo ou bronca.

Era sempre muito amável e brincalhão. Quando queria implicar com as filhas utilizava um termo criado por ele: “dorfa”. Ele dizia: “Menina, deixa de ser dorfa”, quando queria dizer para não serem bobas ou tontas e já emendava com: “O pai fala para o bem de vocês, o pai ama muito vocês”. “Papai era nosso exemplo e melhor amigo. Forte e corajoso, presença marcante, não passava despercebido. Ligava todos os dias por chamada de vídeo apenas para falar bobagens do dia a dia”, conta a filha. Como marido era carinhoso e respeitador. Ele e a esposa mantinham uma convivência harmoniosa, nunca tiveram brigas nem davam gritos em casa, sempre se entendiam conversando. Raro era perceber que tinham se desentendido por algum motivo.

As férias em família eram sempre especiais. A família viajava para o sítio dos avós, onde as brincadeiras das filhas encontravam as da infância do pai. Andavam a cavalo, brincavam no rio, faziam buracos na terra para caçar minhocas, que eram usadas como iscas nas pescarias, subiam em árvores e tiravam até leite das vacas. Teve um dia em que ele ajudou um bezerro a nascer, e a partir dessas idas ao sítio as filhas despertaram para o amor pela vida simples e feliz no campo e pelos animais. Kamilla tinha um cachorrinho de estimação chamado Bummer. “Uma história marcante para mim foi quando eu era bem pequena e meu cachorrinho morreu atropelado; ele contou uma linda história, que o Bummer tinha encontrado uma namorada e ido embora formar uma linda família igual a nossa, com papai, mamãe e filhinho. Eu só fui descobrir quando adulta o que de fato tinha acontecido com ele”.

Foi um homem dedicado e trabalhador, que não mediu esforços para dar as melhores condições de vida para sua família. Era uma pessoa que adorava ajudar os outros. Ele estava sempre disponível e brincava de ser "O Oferecido”, porque estava sempre se dispondo a fazer algo para algum conhecido, apenas pelo prazer de ser útil; sempre estava fazendo algo em casa ou para alguém em seus momentos de folga. A filha lembra de dizer que ele seria um velhinho teimoso, que ia dar trabalho porque nunca ficava parado; e ele dizia que ia deixar para descansar quando partisse, porque dormir era perda de tempo. Ele costumava dizer que não perdia tempo dormindo, estava sempre em movimento, fazendo alguma coisa, sendo útil, como gostava de ser.

Nas horas de folga, junto com a esposa, realizava atividades domésticas e às vezes cozinhava. Também sempre estava procurando algo para consertar — o carro ou alguma coisa em casa — ou para melhorar, como a poda de uma árvore. Era muito bom e caprichoso em tudo. Gostava muito de pescar, embora fizesse muito tempo que não ia. Amava mar e sol, e quando ia para praia aproveitava muito. Era engraçado, porque a esposa detestava praia, mas acompanhava para agradá-lo. Ultimamente o lazer dele era fazer churrasco e cantarolar no karaokê com a família, onde ele e o cunhado formavam a dupla perfeita.

Trabalhava em uma transportadora e era comum ficar alguns dias fora de casa, mas nunca deixou de ser presente. Fazia vídeo chamadas e mandava mensagens. Nos fins de semana fazia contato para dar bom dia, com o tradicional “acorda preguiça, bora tomar café”. Era muito apegado à família e ao time do coração, o Palmeiras. Tinha mania de tomar banho sempre bem quente e sair do banheiro com um short verde, de estimação, e quase sempre mais molhado do que seco. O bordão: “Tô velho, mas não tô morto” era sempre pronunciado quando alguém falava que ele estava velho.

Um homem simples, que viveu uma vida plena e rica, na simplicidade e pureza de seu generoso coração. Sempre ao lado da família, nunca esquecendo de valorizar o tempo com os seus. Encorajava as filhas a serem fortes e darem sempre o melhor sem esperar nada em troca. Um exemplo de pai, marido e de homem. Seu bom humor era outra característica marcante. Sempre tinha uma piada ou uma história pronta e uma cosquinha na orelha garantida.

Ronaldo foi um homem de grandes realizações na vida a partir do seu jeito simples, brincalhão e generoso de ser. Entre os sonhos que ficaram pelo caminho estão o desejo de ter o próprio caminhão e o mais especial deles: o de ser avô. Sua vida foi um grande presente para todos os que tiveram a oportunidade de estar em sua convivência, especialmente para as filhas e a esposa. “Somos todas gratas pelo pai e marido amoroso que ele foi, pela figura de fortaleza que ele representa para nós”, finaliza, emocionada, a filha Kamilla.

Ronaldo nasceu em Assis (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 57 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Ronaldo, Kamilla Almeida. Este tributo foi apurado por Mariana Nunes, editado por Ana Clara Cavalcante, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 14 de fevereiro de 2022.