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Ronaldo José Trento

1960 - 2020

Natureza, tranquilidade, desapego e paz. Isso lhe bastava.

Ele amava a praia, o mato, a natureza, o pôr do sol...

Gostava de Gil e de Caetano e adorava levar as crianças da família em todas as matinês de carnaval.

Nasceu no dia do índio. Devia ter a natureza em seu DNA.

Era despreocupado. Sua tranquilidade era contagiante.

Era muito desapegado e se contentava com o necessário para viver em paz.



Questionador e de sorriso fácil, amou a arte, a música, a corrida, os livros, as flores e o mar.

Trentinho, cujo apelido vem do seu sobrenome, tinha mais cinco irmãos. "Era chamado assim, porque era menor que seu irmão, conhecido por Trentão. Era chamado também de Tuca, por uma de suas irmãs", conta a esposa Kátia.

Cresceu entre as muitas mudanças que marcaram sua infância: a família migrava frequentemente de casas, conforme seu pai Roberto, que era pedreiro, construía outras. Aliás, construir foi o primeiro ofício de Trentinho, que ajudava o pai no serviço. Depois, decidiu reformar a vida profissional, graduando-se em Sociologia. Até chegou a dar aulas, mas não se adaptou. Foi então que prestou concurso para trabalhar na Câmara Municipal de Limeira, cidade paulista em que nasceu. No trabalho, Trentinho ficou conhecido por ser polêmico, pois como disse Kátia, "era um tipo questionador".

O gosto por discutir a sociedade era antigo. Antes mesmo de trabalhar na câmara, até se filiou ao Partido dos Trabalhadores (PT), sendo um dos fundadores do partido em Limeira. Kátia conta que, depois de algum tempo, Trentinho decepcionou-se e, com isso, afastou-se do grupo. Ainda assim, permanecia atento às causas político-sociais.

Casou-se muito jovem com a mãe de seu filho Luan Gabriel. Divorciou-se e, após alguns anos, conheceu Kátia, que conta: "Aos 15 anos, eu já paquerava o Rô – como eu o chamava – , mas ele não tinha olhos para mim. Não éramos exatamente vizinhos, mas algumas vezes moramos próximos um do outro e eu sempre o via pelas ruas. Casei e ele também e, após muitos anos divorciada, sentia-me só e vinha comunicando aos meus amigos que gostaria de ser apresentada a alguém. Um desses amigos era o Nato, que também era amigo do Rô. Tudo arranjado, inventamos uma desculpa para irmos à casa do amigo em comum e, ali, reencontrei Ronaldo, após trinta anos da minha paquera juvenil."

Pouco tempo depois, Rô e Kátia viajaram para um rancho em uma cidade mineira, de onde voltaram com a certeza de que estavam apaixonados. A vida juntos foi marcada por muitas viagens: do Espírito Santo ao Ceará. Muitas vezes iam à praia, o destino preferido de Rô, que sempre dizia à esposa: “Eu quero viajar. Quero ir à praia. Vamos?”

Rô era um homem "humilde e simples", que apreciava o mar tanto quanto a leitura. E amava viagens, como também a música. Essa última, lhe encantava de tal maneira que comprou de uma só vez: clarinete, ukulelê e teclado, disposto a aprender a tocar todos. Aprender, para ele, era tarefa de todo dia.

Kátia conta que em seus últimos três anos, Rô criou uma ânsia por viver. Queria tocar os instrumentos que comprou, aprender inglês e participar do projeto “Doutores do Riso”. Afinal, era uma pessoa muito brincalhona, sempre de sorriso no rosto. “Ele dizia ‘vou matar o Natão’ – o amigo que nos apresentou – , só para me zoar”, conta Kátia. E as brincadeiras persistiam quando, ao sair ou entrar em casa, Kátia dizia “Deus abençoe esse lar”, e em resposta recebia aos risos o “amém, amém, amém” de Rô, que era um cara um tanto cético. “Ele até foi à missa comigo algumas vezes, depois ficou rebelde”, diz a esposa.

Outra paixão adquirida com a maturidade foi a corrida. Rô amava correr e participou de várias corridas beneficentes. “E ai de mim se não estivesse por perto para fotografá-lo na linha de saída e de chegada. Eu era a fotógrafa oficial”, assim Kátia se autointitula. Rô era cuidadoso com a saúde, gostava de pilates e exercitava-se diariamente. Também era teimoso e igualmente correu para garantir a finalização da sua chácara que vinha cuidando, junto à esposa.

Influenciado por Kátia, que desde criança cultivava flores, criou paixão pela lida com a terra. Juntos, os dois empreenderam tempo e amor nos cuidados com a chácara, que era a extensão da casa do casal. "Na verdade, era o nosso paraíso, o nosso recanto”, afirma Kátia, que até fez o pedido de uma “plaquinha muito linda”, onde foi escrito “Recanto São Francisco”.

O casal pintou e bordou, literalmente. Nem mesmo a caixa d’água escapou das tintas. “Pintamos até a caixa d’água. Sempre tinha uma graça, uns bibelôs, uns fuxicos...”, conta Kátia. Esse fervor artístico era a felicidade para Rô, pois se havia uma coisa que o deixava feliz era ver a amada trabalhando com artesanato. Quando a via assim, disparava a roubar "beijinhos apaixonados” como expressão da sua admiração.

No Recanto São Francisco, em gratidão pelas flores cultivadas, o casal recebia muitos pássaros, alimentados com bananas por ele. As borboletas, o céu e a linda paisagem compunham o quadro dos dez anos dessa história de amor e companheirismo. Na mesma composição, além da presença de Rô, não faltavam pipas, bolas e xadrez. Apaixonado por criança, era querido pelos netos da companheira: Gabriel, de 7 anos, a quem sempre correspondia ao convite para soltar pipas; e Catarina, de 9 anos, que se lembrando do gosto dele por cerveja, diz com frequência: “Se o Rô estivesse aqui, iria pedir uma cervejinha”.

Rô e Kátia comemoravam seus aniversários em datas próximas – apenas cinco dias entre um e outro – era uma celebração em conjunto. Na verdade, faziam “tudo juntos”. Cada refeição, todos os dias. Kátia diz que ela queria casar e fazer um festão, e dizia a ele (que não curtia muito essa ideia de casório com festa): “Quem sabe aos 70 a gente casa e faz uma festa!?”

Juntos também, Kátia e Rô adoeceram. Ele cuidou dela durante dez dias, até também se sentiu mal e foi internado. Os filhos de Kátia, Carol e Pedro, tinham boa relação com o Rô. Pedro, especialmente, participou inteiramente dessa experiência de internação. No Dia dos Namorados, as declarações entre Rô e Kátia foram virtuais. "Postei uma mensagem e ele me respondeu: “Juntos até na Covid. Te amo”, conta Kátia, e acrescenta que eles conversavam diariamente durante esse período, sendo essa rotina interrompida apenas quando o Rô foi para a UTI. Na última conversa, Kátia disse ao esposo: “Tenha calma! Peça para Deus e entregue sua vida para Ele. Você vai pedir?”, recebendo a resposta de Rô: “Vou. Eu te amo.”

Exatamente um ano antes da viagem definitiva de Rô, Kátia e ele foram à praia de Caraguatatuba, que ficará, dentre os muitos destinos visitados pelo casal, marcado na lembrança da esposa. Agora, o filho Luan Gabriel cuida da chácara do pai e pretende fazer de lá uma agrofloresta. "Mandei fazer um arco em nosso túmulo, onde Rô foi sepultado. Uma trepadeira chamada 'Jardim de Madagascar' já foi plantada e cresce vigorosa, fazendo sombra e declarando meu grande amor", diz Kátia, que finaliza sua homenagem com uma certeza: "O Rô ficará feliz com o cheiro das flores”.

Ronaldo nasceu em Limeira (SP) e faleceu em Limeira (SP), aos 60 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela sobrinha e pela esposa de Ronaldo, Maria Eugenia Trento da Silva Benedetti e Kátia Zovico. Este tributo foi apurado por Lígia Franzin e Thaíssa Parente, editado por Marilza Ribeiro e Luciana Fonseca, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 8 de janeiro de 2021.