Sobre o Inumeráveis

Scharlles Andrade de Farias

1974 - 2021

Ele louvava a vida e a Deus com a música, a alegria e seu amor pelas pessoas.

Scharlles era casado com Simone e faleceu um dia antes de completarem dezenove anos de casados. Os dois se conheceram na fábrica de chocolates onde trabalhavam, se davam muito bem e se completavam em suas diferentes personalidades: enquanto ele era muito agitado, ativo e de temperamento forte, ela era seu oposto, sempre tranquila. Uma combinação que dava equilíbrio à relação de ambos.

Era muito apaixonado pela esposa e teve apenas uma filha, Lara Kamilly. Possuía um lado paternal muito intenso, zelava pela filha com muito amor e, quando necessário, tratava-a com firmeza, ensinando princípios e virtudes. Muito cuidadoso, não gostava que ela fosse para a escola sozinha; quando não pagava transporte escolar, ele mesmo a levava de carro, moto ou bicicleta. Quando Lara planejou fazer um curso preparatório para o Instituto Federal, ele fez questão de fazer com ela todo o trajeto de ônibus que ela usaria, ensinando a se portar em possíveis situações que enfrentaria.

Era um homem de bom coração, apaixonado pela vida. Sempre que podia, ajudava as pessoas; gostava de conversar, de aconselhar e de fazer o bem. Muito comunicativo, falava alto e tinha uma voz linda. Foi um ótimo amigo, que soube conservar as amizades da infância e da adolescência por toda vida. Sincero, não tinha filtro: exprimia suas percepções de forma direta. Muito curioso, entendia de tudo um pouco: conserto de carros, serviços de elétrica e manutenção de casa.

A irmã, Scheila, conserva muitas memórias afetivas: “Nossa infância foi fantástica. Morávamos em frente a uma praça e aproveitamos muito aquele local, desde quando o espaço não passava de um lote de areia. Ele era o que mais amava se aventurar por ali. Plantou abóboras e as escondia entre as folhagens; na colheita, voltava satisfeito para casa trazendo o legume para ser preparado por nossa mãe. Certa vez, acidentou-se entre as manilhas que estavam no local e por pouco não perdeu o dedão do pé”.

“Nossas viagens a Minas também foram memoráveis! Fazíamos muitas brincadeiras e às vezes tínhamos algumas briguinhas para ver quem se sentava nas janelas. Como eu era 'da paz', ficava no meio e sofria com os empurrões que eles me davam a cada curva, por estar dormindo. Os momentos prazerosos da infância seguiram até a vida adulta, nas brincadeiras com bola e na alegria de soltar pipas na laje.”

Embora tivesse um temperamento forte, Scharlles era muito zeloso com a família, às vezes até ciumento. Protagonizava discussões, a maioria delas por seu comportamento passional. “Ele era capaz de dar a vida por nós, tanto que se contaminou cuidando de nosso pai no hospital. Era divertido e muito brincalhão, gostava de contar casos engraçados e 'implicar' com o cunhado, que era como um irmão pra ele. Era também muito prestativo, qualquer coisa que precisávamos ele estava sempre pronto para resolver”, conta Scheila.

Gostava de ir à praia, fazer churrasco, passear e ir à igreja com a família. Diariamente ia à casa dos pais e gostava de passar parte do seu tempo com eles.

Apaixonado por música, aprendeu a tocar violão por volta dos 10 anos; gostava de tocar e cantar. Nas horas vagas, sempre que podia, gostava de jogar uma pelada com os amigos e era sempre o organizador do grupo. Apaixonado também por futebol, era um fiel torcedor do Fluminense; era o único da família que não era vascaíno. Scharlles divertia-se vendo jogos de diferentes equipes, principalmente em campeonatos. Os dias de jogos da Copa eram memoráveis: sempre regados a churrasco e pipoca, risadas e muito barulho!

Ele amava caldo verde, churrasco e bobó de camarão. Sonhava em viajar para o Nordeste, pois queria curtir as águas quentinhas da Bahia: ele amava praia, mas não gostava das águas geladas do litoral do Espírito Santo!

Scharlles adorava jogar videogames, desde a época do Atari. Em seus últimos anos, era vidrado pelo jogo WYD. Inclusive recebeu homenagem de todos os jogadores (WYD Liberty), que pararam as batalhas por vários minutos em honra ao jogador “Papai brutal” — seu codinome — que foi vencido pela Covid-19. Seus amigos de jogo contavam que ele era um pai para o grupo, que dava conselhos, tanto no mundo virtual como no real, e que falava com eles sobre Deus.

Scharlles amava cantar! Na igreja, participava ativamente do coral e do grupo de louvor. Muitas vezes fazia solos — era uma verdadeira paixão para ele — e quando fazia participações em cantatas, gostava de ver todos presentes. Nas festas de família, com música ao vivo, sempre dava uma “palinha”. Nas horas vagas, amava cantar no seu caraoquê. Os clássicos dos Mamonas Assassinas, do Legião Urbana e canções em italiano como "Con te Partirò" eram seu repertório preferido. Depois que ele partiu, é impossível para a família ouvir suas preferências e não se emocionar.

O grande orgulho profissional de Scharlles foi ter trabalhado na fábrica de chocolates de sua cidade, mas nos últimos tempos era administrador de imóveis. Tomava conta do patrimônio dos pais e também de outras pessoas. Sua rotina era bem flexível: costumava fazer da casa dos pais o seu escritório e ali prestava assistência aos inquilinos, mostrando seu bom coração ao ajudá-los em coisas que não estavam em suas obrigações contratuais. Demonstrava humanidade ao compreender eventuais atrasos, mas também era firme quando necessário.

Scharlles foi criado na Igreja Presbiteriana, onde aprendeu sobre Deus e a Bíblia. No auge de sua adolescência teve o desejo de experimentar alguns prazeres do mundo. Por intermédio do irmão, Schuberth, ele retornou e passou a congregar em um templo Batista. Desde então, passou a trabalhar ativamente na Igreja e logo foi chamado para ser diácono. Foi líder de pequenos grupos de estudo na Igreja e se engajou na parte do Louvor, envolvido em grupos e no coral. Era super responsável e não faltava a nenhum ensaio. Também se encarregava de dar cobertura aos irmãos quando tinham imprevistos e os substituía em sua escala. Falava muito sobre o amor de Deus e apresentou Jesus a muitas pessoas.

Seus pais foram exemplo vivo de amor e de serviço cristão, surgindo daí a motivação dos filhos em servir na Igreja com todo amor e fé. Após o falecimento do irmão mais novo, Scharlles testemunhou na igreja o cuidado de Deus durante o período de internação. “Ele também se despediu da família antes de entrar na UTI por meio de mensagens, demonstrando seu amor e gratidão a Deus por tudo que ele fez em sua vida e pelo privilégio de ter nascido em nossa família”, afirma Scheila.

Scheila gosta de se lembrar do espírito brincalhão de Scharlles, dos casos engraçados que contava, das implicâncias que tinha com o irmão mais novo e destaca os principais ensinamentos que dele recebeu, como “fazer o bem sem olhar a quem” e de como, apesar de sua vida financeira bem restrita, sempre tinha compaixão e ajudava as pessoas com o que podia.

Conta ela: “Já tirou colegas envolvidos com drogas de situações embaraçosas, ajudando-os a mudar de vida e também conseguiu que pessoas humildes tivessem oportunidade de trabalhar. Em momentos alegres e difíceis o louvor a Deus estava sempre em seus lábios”.

A filha também homenageia Scharlles por meio das boas lembranças que conserva:

“Meu pai foi alguém muito presente na minha vida; era teimoso, mas tinha um coração enorme. Essa era uma característica muito bonita do meu pai. Ele tinha prazer em servir na Igreja e acredito que herdei isso dele, é algo que sempre me foi ensinado, então hoje sigo os passos dele. E até mesmo no futebol!”, conta Lara.

“Uma das minhas melhores lembranças é a de que sempre saíamos em família aos domingos e dávamos boas risadas sobre situações do cotidiano. Eram momentos em que, em meio a correria, eu podia me divertir com meus pais.”

“Além disso, a música era o 'hobby' favorito do meu pai. Hoje em dia, ouvir Legião Urbana e Mamonas Assassinas me faz sentir mais perto e conectada a ele, tanto que tenho uma 'playlist' para esses momentos de saudade. Isso me remete também às noites em que ele estava entediado e apenas um vinho e um caraoquê melhoravam o seu dia.”

Lara se alegra com suas semelhanças com o pai, afirmando: “Gosto de ouvir da minha mãe que eu me pareço com meu pai na personalidade, pois significa que, de alguma forma, carrego um pedaço dele em mim. Os hábitos e costumes do meu pai passarão de geração em geração e fico orgulhosa disso".

Ela termina dizendo: “Meu pai tinha muitos sonhos e um deles era poder viajar para lugares bonitos e de fato aproveitar a vida. Porém, a prioridade dele sempre foi dar uma vida melhor pra gente e se esforçar ao máximo. Por isso, carrego esse objetivo de poder viver intensamente e não deixar nada para depois. Se fosse para deixar um ensinamento, diria para as pessoas não viverem preocupadas com o amanhã, pois só Deus sabe; que é para aproveitar o agora e fazer o que se ama".

O pai e o irmão de Scharlles também foram vítimas da Covid-19. Para conhecer um pouco da história deles acesse as homenagens a Alcebíades Castório de Farias e Schuberth Andrade de Farias neste Memorial.

Scharlles nasceu em Vitória (ES) e faleceu em Vitória (ES), aos 46 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela irmã e pela filha de Scharlles, Scheila Andrade de Farias Werner e Lara Kamilly de Andrade. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 5 de dezembro de 2022.