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Sebastião da Silva Cunha

1930 - 2020

Nem doce de limão azedava o coração dele.

“Manda”. A ordem era clara: bastava alguém perguntar se ele queria repetir a refeição e a resposta chegava sem gaguejar. Sebastião era bom de garfo – e o prazer em comer bem só era superado pela incansável disposição em ser gentil.

E não tinha doce de limão capaz de azedar o coração dele. Certa vez, a filha Elizangela inventou de testar justo essa receita. Foi uma enchente de caras feias, a compota desandou. Sebastião? “Ficou muito bom, filha”, e foi o único a encarar colheradas generosas da sobremesa.

Ele tinha preferências, claro. Não resistia a um peixe assado. Mas, independentemente do cardápio, gostava mesmo é da mesa farta com a família toda reunida em volta. E haja memória para gravar o nome de tanta gente brigando por uma cadeira perto do Sebazão: 14 filhos, 50 netos, 66 bisnetos e nove tataranetos, além de genros, noras e amigos, que enchiam a casa nas comemorações, nos finais de semana e nas horas livres.

No hospital, havia escala para falar com ele pelo celular – ou a linha estaria todo o tempo congestionada. Mas cada um tinha seu cantinho assegurado naquele coração enorme. As filhas, por exemplo, já sabiam: festa importante exigia sapato confortável. A cada uma delas estaria reservada ao menos uma dança com o pai. Só não havia negociação no gênero: brega, de Odair José a Reginaldo Rossi.

Sebastião tinha um compromisso inegociável com o amor e com a alegria. Uma aliança que permanece materializada nas mãos dos filhos e netos, num anel de tucum que ele mesmo fazia. Joia de família, com nome e sobrenome. A neta Sâmila ainda nem havia nascido quando a internação aconteceu, mas vai ganhar o dela – que já estava pronto e guardado. O avô também deixou finalizado o anel da Naiá, que faz aniversário em setembro e tinha viagem marcada para receber o presente dos 15 anos.

Outro neto, que mora mais afastado e aproveitava as férias para aprender artesanato com o avô, já avisou: a caixinha de artesanato é dele. E, entre essas e muitas outras histórias, seguem todos unidos na proteção do maior tesouro de todos: a lembrança de uma pessoa que fazia da vida um baile de delicadas gentilezas.

Sebastião nasceu em Tefé (AM) e faleceu em Manaus (AM), aos 89 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Sebastião, Elizangela Monteiro. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Juliana Parente, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 28 de agosto de 2020.