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Sebastião Marcelo de Oliveira

1957 - 2020

Tinha uma linguagem própria para falar com seus gatos: ‘Tino-mino-ino-a’ e eles olhavam como se entendessem.

Marcelão, como era mais conhecido, era a celebridade do bairro. Por onde quer que passasse, saia gritando e puxando conversa com todo mundo. Morou por mais de 50 anos na Vila Campestre, bairro da zona sul de São Paulo, e adorava brincar com os vizinhos. Seu maior hobby era inventar apelidos, daqueles que pegavam e não desgrudavam mais.

Ao mesmo tempo que brincava com todos, era muito fechado. “Meu pai era muito quieto, não falava muito. Na verdade, acho que ele queria falar, mas parecia que tinha uma barreira”, conta sua filha Mariana. “Ele teve uma vida difícil, com uma criação muito dura do pai. Ainda quando era muito novo, perdeu os pais e precisou criar e sustentar os irmãos.”

Marcelão sofreu, mas aprendeu muito com a vida. A maneira que encontrou para encará-la foi adotando um ar sério. Mas essa imagem ia por água abaixo quando fazia gestos simples e significativos, que era a sua maneira de demonstrar afeto. “Ele comprava paçoca, balinha, chocolate e ia distribuindo para todo mundo aqui na rua, no serviço. Tinha o coração muito bom, mas não gostava que falassem. Ele tinha que parecer sério, bravo, mas se derretia por dentro.”, segundo Mariana.

Dentre os tantos ensinamentos que deixou, respeitar o espaço do outro era primordial. “Sempre falava pra gente ‘Eu nunca atrapalhei ninguém, não faço o mal para ninguém, então não mexe comigo’. Ele gostava de limites. Além disso, estava sempre preocupado com os outros, mas não queria Ibope, não gostava de ser elogiado”, conta a filha.

Em casa, Bastião – como foi carinhosamente apelidado – não era diferente: proteger e prover para seus familiares era motivo de honra, sempre demonstrando amor à sua maneira. “Sempre cuidou muito bem da família, não deixava faltar nada; não admitia coisa errada, dispensa vazia e preguiça. O jeito dele amar era esse. Não era de abraçar, beijar, mas sempre se preocupava em saber como a gente estava.”, relata a filha.

O amor de sua vida foi Maria Terezinha, com quem foi casado por 39 anos. Mariana e Marcelo são a materialização desse amor. Eduardo foi seu primeiro neto e maior xodó, ninguém podia fazer nada com ele que o avô superprotetor estava a postos para salvá-lo. O segundo neto, Gustavo, foi mais um presente que esse avô babão ganhou. Com um coração do tamanho do dele, havia espaço para mais. Considerava Bruno e Luís Fernando também como seus, e estava sempre mimando os meninos como podia.

Era o tipo de pessoa sistemática que não fugia da rotina. Mariana diz que era como se ele tivesse “um relógio dentro do corpo, não punha celular nem nada para despertar, mas todos os dias se levantava às 6:30 e tinha todo um ciclo. Já acordava de manhã falando com os gatos. Ele inventava umas coisas... falava assim para eles: ‘Tino-mino-ino-a’ e os gatos ficavam parados olhando e prestando atenção nele – era como se entendessem. Aí ele ia no banheiro, descia e tomava o café dele, subia para tomar banho e ia trabalhar. Parecia um reloginho.”

Aos finais de semana, adorava tomar uma cervejinha em casa mesmo. O almoço era por sua conta: ele montava o cardápio e preparava uma variedade de pratos. “Meu pai cozinhava bem pra caramba. As carnes que ele fazia eram muito boas: carne assada, cozida, churrasco... Ele era o especialista das carnes. Mas nunca era só pra gente em casa, ele distribuía para os vizinhos, mandava chamar os sobrinhos. Queria todo mundo aqui. O negócio dele era estar com o povo perto, por mais que fosse fechadão”, menciona Mariana.

Era apaixonado por carros antigos e motos, tinha até coleção. Mas o que lhe trazia paz mesmo era ficar sentado na laje ouvindo o seu radinho antigo, companheiro de todas as horas, e apreciando a vista do bairro, quase em sua totalidade. “Ele era muito informado, via todo o tipo de jornal na TV e ficava ouvindo notícias no rádio o dia inteirinho por horas e horas. Ele também adorava um samba. Teve uma época que não parava de ouvir os discos da Alcione e do Racionais. Era todo o final de semana, o dia inteirinho tocando”, lembra.

Além dos apelidos, Marcelão era dono de bordões marcantes como “Depois não vem dizer que a cigana te enganou, tô te avisando”. Tinha uma resposta pronta para cada situação.

Os filhos eram seu maior orgulho e Marcelão pôde celebrar a entrada da filha na faculdade. “Cada conquista nossa era como se fosse dele mesmo. Meu pai sempre nos aconselhava ‘Estuda bastante, não faz que nem eu fiz, não’, porque ele só foi concluir o segundo grau com mais de 40 anos, e ele conseguiu acompanhar isso.”, relembra Mariana.

Uma memória marcante e que fez de Mariana quem ela é hoje vem da infância: “Lembro quando eu era pequena que ele me acordava de madrugada, me pegava no colo e trazia algumas coisas para a gente comer junto. Certas coisas como aliche, queijo gorgonzola, que a maioria das pessoas não gosta, eu gosto, porque aprendi com ele. ‘Vem, filha. Vem cá com o pai’, ele falava. Isso era uma coisa nossa. Tanto que mesmo depois de grande ele comprava só para nós dois comermos.”

Mesmo estando um pouquinho mais longe, Marcelão nunca deixará de se preocupar com os seus. O orgulho que sente continuará crescendo à medida que a saudade aperta. As balinhas no bolso para oferecer a quem quer que apareça ainda vão melhorar o dia de muitas pessoas por aí, mesmo que seja na saudosa lembrança de cada encontro.

Sebastião nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 63 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Sebastião, Mariana Maia Alves de Oliveira. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Marina Teixeira Marques, revisado por Paula Ledo dos Santos e moderado por Rayane Urani em 12 de maio de 2021.