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Severina Felipe Ribeiro

1936 - 2020

Mesmo sem beijos e abraços, deixou um amor enorme e, com suas asinhas nos pés, partiu em um novo passeio.

"Uma mulher de fibra", essa é a primeira coisa que a filha caçula pensa quando fala na mãe.

Dona Severina, para os amigos, ou Bio, como a família carinhosamente a chamava, tinha um gênio forte e um coração gigante. Logo após seu casamento com Severino Vicente Ribeiro, deixou sua cidade natal e veio para São Paulo, onde construíram sua família. Dos dez filhos, a ordem não natural da vida lhe tirou quatro. Mas ela seguiu com Adelma, Paulo, Edson, Orlando, Ailton e Simone. E, generosamente, criou Andreia, a caçula, que foi a última a estar perto da mãe.

A família seguiu crescendo e ela foi presenteada com 18 netos e 11 bisnetos. Um abraço seu? Só se fosse roubado. Pegar na mão? Nem pensar. Para atravessar a rua, segurava no pulso. Ainda assim, Bio tinha muita vitalidade e amor para distribuir entre essa família grande. “Mesmo não gostando de beijos e abraços, você foi a pessoa mais carinhosa que convivi e que tive o merecimento de chamar de mãe. Suas vivências rudes não lhe permitiam aceitar demonstrações físicas de amor. Mas que amor você era!”, afirma Andreia com orgulho e em tom de conversa com a mãe.

Costureira, amava o que fazia e aprendeu sozinha o ofício. Uma mulher extremamente generosa, que acolhia todos em casa e não media esforços para ajudar. Suas características mais fortes e que ficam de ensinamento, são a determinação, a disposição e seu coração nada rancoroso. Deixa como marcas as frases: “Vai ficar tudo bem” e “Façam por mim em vida”.

Bio adorava passear e comer. Era só convidá-la para um dos dois programas e ela estava sempre a postos. Cozinhar não era seu forte. Mas, como amava comer, às vezes ficava sem almoçar, só para filar a boia na casa das cunhadas. Quando não dava essas escapadas, era comum também encontrá-la comprando coxinha às escondidas. Suas perdições: coxinha e sorvete.

Superativa, não perdia um passeio, porém se divertia pouco. Não era de muitas brincadeiras... Se não fizessem sua vontade, dizia logo que iria para a rodoviária, voltaria pra casa sozinha. Mas Andréia confessa: “Depois que ficamos adultos, já não ligávamos mais para as suas teimosias. Tirávamos de letra, conseguíamos enganá-la com mais alguns passeios e lá ia Dona Severina aproveitando.”

Aliás, aproveitar foi uma das coisas que ela fez bastante em seus últimos anos. Teve uma vida árdua e, quando percebeu que podia voar, nem seu esposo, com os sessenta e quatro anos de casamento, segurou Severina. Diziam que ela colocou asinhas nos pés e não parava. Tinha até amigas ─ uma novidade em sua vida. Gostava muito de ir à igreja e não perdia um dia sequer.

“As idas à igreja eram como um refúgio para minha mãe. Acreditamos que ela pegou a covid por lá. Foi bem no início da pandemia. Meu pai e todos os filhos que estiveram com eles também foram contaminados, mas apenas ela não resistiu. Ele, aos 89 anos, conseguiu se recuperar, mas só soube de sua partida vinte dias após, quando teve alta. Era necessário que ele se fortalecesse para suportar a triste notícia”, relata Andreia.

Geniosa, Bio sempre deixou claro que não queria ser enterrada, que tinha pavor de velório; e assim, a sua vontade foi feita. Partiu em um piscar de olhos, sem despedidas, mas sabemos que algo maior realizou seu desejo. Não permitia e nem gostava de dar trabalho a ninguém. Costumava dizer que não queria ver nem mesmo seu esposo se preocupando ou fazendo qualquer manobra para ajudá-la.

Andreia despede-se, lamentando a falta que fazem a bondade e o sorriso da mãe. E complementa: “Assim era minha mãe de criação, com seu gênio forte e seu amor ímpar. Ainda não acreditamos que ela se foi... Seu Severino que o diga. Apesar da enorme saudade que sinto, conforta-me ao menos acreditar que ela está bem em outro lugar, longe de nossos olhares, mas perto dos corações. Devido ao seu desejo e em razão de toda a situação, minha mãe foi cremada e nós, os filhos, juntamente com meu pai, depositamos suas cinzas no Lago Riacho Grande quatro meses após sua partida.

Severina nasceu em Aliança (PE) e faleceu em São Paulo (SP), aos 84 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de criação de Severina, Andreia Murakami. Este tributo foi apurado por Denise Pereira, editado por Denise Pereira, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 26 de novembro de 2020.