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Sophia Madeira Barros

1920 - 2020

Nos bolsos de seus vestidos coloridos, sempre havia moedinhas e bombons para fazer a alegria da garotada.

Nascida no sertão do Ceará, Dona Sophia até parecia uma pintura ou um poema em homenagem à mulher nordestina.

Mudou-se com sua família para Fortaleza em 1964. Enviuvou após a partida de seu marido, Sr. Raymundo, com quem teve dez filhos. A família cresceu e se multiplicou. Dona Sophia contava 34 netos e 15 bisnetos.

Essa mulher forte e generosa chegou pertinho de comemorar 100 anos de vida. Os 99 anos vividos em sua plenitude merecem ser celebrados por cada um de seus descendentes.

Nos anos 1980 teve de se conformar com a partida de três de seus dez filhos para São Paulo. Seu coração de mãe ficou apertado, ela, no entanto, mantinha em mente que precisava apoiar a decisão tomada, visto que a mudança traria melhores oportunidades de vida a seus meninos.

Dona de um coração enorme, não gostava de meias palavras. Tinha por hábito demonstrar sentimentos e opiniões de forma direta. Foi assim que viveu sempre para o bem da família, dando verdadeiras aulas de convivência ética e ensinando a arte de repartir o pão, ou melhor, os bifes!

O neto Francisco lembra com saudades da comida preparada com muita simplicidade, e também com muito capricho por sua avó. Bifes com molho, baião de dois, mugunzá, iguarias nordestinas de sabor inigualável.

Francisco costumava reclamar do tamanho dos bifes, achava-os muito pequenos. A avó respondia à crítica do garoto com um argumento incontestável: "São pequenos para todo mundo poder comer!"

Tendo criado todos os filhos, sem deixar que lhes faltasse o sustento e o lastro afetivo, Dona Sophia aprendeu a economizar, a fazer fartura com pouca coisa, a fazer render o dinheirinho suado que entrava em sua casa.

Sophia era apaixonada pela memória de seu pai, Sr. Manuel Madeira Barros. Guardava na lembrança e no coração muitos ensinamentos e exemplos que guiaram sua forma de ver a vida, enfrentar os problemas e prover sua família, tanto na parte material, quanto moral.

O dia de receber a aposentadoria era aguardado com ansiedade. Dona Sophia pagava religiosamente suas contas e o dinheirinho que sobrava guardava entre as roupas perfumadas dentro do armário. A pequena poupança era tão bem guardada que ela acabava às vezes se esquecendo de onde havia afinal colocado aquele precioso tesouro. Então, um belo dia, meio sem querer, terminava por achar as economias. Ficava tão feliz que dava pulos de agradecimento a São Longuinho, conhecido como o Santo que ajuda a achar coisas perdidas.

O final de tarde era a parte mais esperada do dia. Era nessa hora que "a vózinha", como era chamada carinhosamente por todos, punha uma cadeira na calçada e ia apreciar o movimento. Nunca se esquecia de abastecer os bolsos de seus vestidos floridos com uns trocados e umas guloseimas para agradar a quem ela gostava.

"De minha infância lembro que eu e meus primos sentávamos no chão e ela nos dava tapioca com café; aquele café doce e a tapioca nunca mais terão o mesmo sabor, sabor de família, de memória e de amor", lembra o neto Francisco.

Sophia é uma palavra de origem grega e quer dizer “sabedoria”. Não poderia haver nome mais bem escolhido para representar essa cearense honrada que contava os dias para o seu centenário de vida. A essa hora, há de estar dando muitos pulinhos no céu, ao lado de São Longuinho, por ter encontrado, na vida que teve, tanto amor e alegria.

Sophia nasceu em Caucaia (CE) e faleceu em Fortaleza (CE), aos 99 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo neto de Sophia, Francisco Adoniran Braga Ramos. Este tributo foi apurado por -, editado por Ana Macarini, revisado por Lícia Zanol e moderado por Rayane Urani em 29 de agosto de 2021.