1981 - 2020
"Sempre disse que você era bom demais para ser daqui, meu anjo."
Este texto foi escrito por Lorraine Moura Gomes, com todo afeto e admiração para o amor de sua vida, Wesclay:
2020 foi o ano programado para realizarmos a nossa tão sonhada viagem à Europa. Fizemos inúmeros planos para celebrar os dez anos de casados. Seria em Veneza, onde trocaríamos os nossos votos de casamento. Sonho este, interrompido pela pandemia.
Desde a época que tudo começou na China, já nos comovíamos. Quando chegou à Itália, nos preocupamos. Sou fisioterapeuta especialista em ortopedia e traumatologia, e fui obrigada a trabalhar em uma UTI. Não tinha especialidade na área e isso me gerava muito pânico; sentia-me como se fosse uma médica ginecologista obrigada a fazer uma neurocirurgia.
No entanto, sem opção e com muito medo, fui e dei o meu melhor. Estudei, ajudei como pude, me contaminei, e, três dias depois, meu marido também se contaminou. Ele não sentia nada, apenas uma febre persistente. Eu sentia todos os sintomas possíveis e imagináveis.
Desde o início da pandemia, quando apareceu o primeiro caso na nossa cidade, como ato de amor, deixamos nosso filho de três anos na fazenda, aos cuidados dos avós. Fizemos testes e conseguimos, durante cinco meses, vê-lo duas vezes.
Numa madrugada, vi que não era normal aquela febre no oitavo dia. Levantei-me e fomos ao hospital. Lá, viram uma pneumonia secundária e poucas lesões de covid-19, mas foi indicada a internação. Um dia internado, o quadro piorou. Como trabalhei com isso, comecei a me preocupar. Ligaram-me e disseram-me que poderia dormir com ele no hospital. Ao chegar, mostraram-me a tomografia. Logo vi que havia muito comprometimento, portanto, a intubação seria necessária. Fui e o avisei, conversamos e ele ficou ciente do que viria pela frente, e eu também sabia.
Suas palavras se resumiam ao nosso filho, pedia para que eu cuidasse bem dele. Fiquei, segurei a sua mão e não saía de perto dele. Sempre tivemos uma conexão muito forte, coisa de alma. Tudo que ele sentia na UTI, eu sentia do outro lado. Até que vi e senti que para ele não dava mais. Conversei com Deus e com ele, e assim, quatro horas depois, ele faleceu.
Mas, sabe... Desde que o conheci (e olha que o conhecia desde criança), eu falava que ele não era daqui, pois era muito bom, um coração inexplicável. Era um anjo na Terra que me proporcionou, além de dez anos de casados, muitas alegrias e conquistas. Não consigo nem chorar, porque fui feliz demais.
Como pai, era melhor que eu como mãe. Eu não quero que ele vire um número, e, caso venha a virar, que seja em porcentagem, pois quero que as pessoas consigam ser 1% do que ele foi. Nosso pequeno João Emanuel saberá do homem íntegro que o pai foi. Farei de tudo para honrar seu nome, seremos felizes por ele, afinal, meu filho sentiu que o papai estava indo embora, mas que agora está em um lugar bonito, só que não podemos abraçá-lo nem vê-lo, porém ele olha por nós e nos protege.
Quanto a mim, vou juntando os pedacinhos, vivendo um dia de cada vez, pois se alguém viveu esse vírus de todas as formas, essa pessoa fui eu. Trabalhando, vendo conhecidos e desconhecidos indo embora, sentindo todos os sintomas, perdendo alguém que tanto amo, mas tendo o milagre de sobreviver.
Vai meu anjo, para o lugar que sempre foi seu.
Wesclay nasceu em Rio Verde (GO) e faleceu em Goiânia (GO), aos 39 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pela esposa de Wesclay, Lorraine Moura Gomes. Este tributo foi apurado por Lígia Franzin, editado por Mariana Lopes, revisado por Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 29 de dezembro de 2020.