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Zita-May de Oliveira Pittelli

1940 - 2021

Movida pelo amor, viajou mil quilômetros sozinha no Fusca novinho que ela mesma comprou.

Filha de um casal da região do Cariri, Zita-May nasceu na década de 1940, mas até mesmo a escolha de seu nome incomum deixava claro que não seria uma mulher que passaria desapercebida. Com seus modos, os desafios que assumiu e os tabus que quebrou no amor pela Medicina e pela família, Zitinha, como era carinhosamente chamada pelos familiares, teve uma trajetória inovadora e recheada de paixões.

A mãe, Ambrosina, havia decidido que os nomes de todos os filhos dela com Conrado começariam com a letra Z, e precisou de muita criatividade para batizar cada uma das doze crianças. No caso de Zita, a sobrinha Martha Luisa conta que no primeiro registro no cartório local constava o nome Zita Meire. O equívoco em relação à grafia somente foi descoberto na época da matrícula da menina na escola. O certo é que o nome escolhido sempre foi Zita-May, bem original para uma menina do sertão nordestino.

A escolha provavelmente foi influenciada pelas leituras de romances e revistas e até mesmo por filmes de cinema com os quais Dona Ambrosina teve contato. Ela tomou as providências necessárias para alterar o registro no cartório para a grafia correta, Zita-May. Cabe ressaltar que Dona Ambrosina fazia questão absoluta do May. Muitas vezes alguém chegava procurando por Zita, e ela respondia que ali não tinha Zita, mas Zita-May. O May era tão forte que muitos a chamavam somente de May.

Uma parcela da vanguarda de Zita teve origem na educação recebida da mãe. O pai era dono de um bar e de um cinema. Com a morte de Seu Conrado, a filha viu Dona Ambrosina ocupar o lugar atrás do balcão do bar da família e seguir gerenciando o cinema para continuar garantindo o orçamento doméstico.

A menina alegre e engraçada circulava pelas ruas de Senador Pompeu em sua bicicleta. Zita-May chegava gritando e cantando e ficou conhecida na cidade por seu jeito extrovertido.

Na juventude, seus sonhos ficaram maiores que as possibilidades da cidade onde nasceu. Decidiu então ir morar em Fortaleza, na casa da irmã Zilmar, que era mais velha e se tornou uma segunda mãe, fonte de muitos conselhos e carinhos. A morada de Titita, apelido de Zilmar, foi a base para que Zita-May estudasse e fosse aprovada no vestibular para Medicina na Universidade Federal do Ceará.

A retribuição de todo o acolhimento e carinho de Titita veio anos depois. Com a aposentadoria da irmã, Zita a chamou para morar com ela no interior de São Paulo. E, numa convivência harmônica, Zilmar, vinte anos mais velha que a caçula Zita, acabou sendo uma avó para os filhos de Zita com Jaziel. Por ser professora e ex-diretora de escola, teve grande contribuição na educação deles.

Por falar em Jaziel, retomemos a linha do tempo da vida de Zita. Depois de formada em Medicina, o desafio e a distância de casa aumentaram. Ela teve a oportunidade de fazer residência no hospital da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (SP). Foi no ambiente da residência em Ginecologia e Obstetrícia que os dois se conheceram. Jaziel conta que a atenção dele pela futura esposa teve como uma das razões o fato de ela ser muito bonita, lembrando que todos os residentes admiravam suas pernas, exibidas nos curtos vestidos que se usavam naquela época.

Durante a formação em Ginecologia, as afinidades entre Zita e Jaziel foram ficando evidentes. Uma delas era o ato de piedade deles ao internar pacientes em estado avançado de câncer de mama e com falta de ar. Eles providenciavam as internações para que elas pudessem receber oxigênio e ter uma melhora no estado geral. A atitude, em muitos momentos, gerava desagrado.

Os dois já tinham se apaixonado quando, ao final da residência, Zita foi para a recém-inaugurada capital Brasília. A razão é que ela foi ser médica e professora-adjunta de Ginecologia e Obstetrícia, no novíssimo Hospital da Universidade de Brasília. Enquanto esteve por lá, as cartas eram o canal de comunicação possível para manter aceso o amor. May e Jaziel trocavam correspondências regularmente, sempre por iniciativa dela.

O amor foi tanto que Zita “não resistiu ao cheiro da brilhantina do Jazi”, expressão usada pela juventude daquele tempo, como, envaidecido, recorda Jaziel. Ela decidiu retornar para São Paulo e pouco tempo depois se casaram. Ela contava da epopeia da viagem com muito orgulho, a bordo do Fusca bege comprado com o salário de médica e professora.

O casamento é um capítulo à parte. Foi um momento de reconhecimento pelo trabalho dedicado de Zita e Jaziel na Ginecologia do Hospital do Sodalício Stella Maris, em Guarulhos (SP). Irmã Lina, uma das gestoras da instituição mantida por uma comunidade religiosa, fez questão de que a celebração acontecesse na capela da casa. Saudoso, Jaziel recorda que o templo era maravilhoso, e que as irmãs da congregação prepararam uma linda festa para celebrar a união do casal de médicos.

Impossível não contar que o vestido usado pela noiva foi feito pelas irmãs do Stella Maris, que tinham Zita como uma filha. Em vez do longo com véu e grinaldas, o modelo ia até a altura do joelho, em seda amarela estampada de flores costuradas à mão pelas freiras. Por cima, um sobretudo também costurado por elas.

Algum tempo depois veio a gravidez do primeiro filho, Paulo. Dias antes do nascimento da criança, para evitar os deslocamentos entre a capital paulista e Guarulhos, onde ficava o hospital, Zita decidiu parar de atender. A dedicação dela às pacientes era de tal ordem que na sala de espera cheia de gestantes que faziam o pré-natal com ela, o anúncio da decisão causou desapontamento geral. Importante dizer que o substituto, presente na sala e vendo a reclamação das gestantes, era Jaziel. Rindo da lembrança, ele acrescenta que “ela era simplesmente adorada por aquelas pacientes”.

O nascimento de Paulo mudaria novamente os rumos da vida de Zitinha. Agora no lugar de mãe, decidiu, por livre vontade e sem nenhuma pressão ou interferência externa, abandonar a Medicina. O projeto inicial era apenas dar um tempo e depois fazer algum curso de reciclagem e retornar à prática da Ginecologia. Mas na sequência vieram os outros filhos, Roberto e Cristiane. E um pouco mais tarde, quando Zita já estava com seus 40 anos, Luciana, numa gestação tranquila.

Antes do nascimento de Luciana, a família mudou-se para a cidade de Bebedouro, no interior paulista. A viagem de mudança da grande metrópole para a pacata cidade interiorana aconteceu no “Poeirinha”, apelido dado ao Fusca 68 que ela comprara em Brasília. Com Jaziel, três filhos e o cão Conde, lá se foi a família Pittelli rumo a novos tempos.

A casa, em estilo eclético, situada numa rua de paralelepípedos, bem próxima à Praça Anchieta, era a materialização do estilo de Zita. De muro baixo e janelas grandes, refletia a disposição dela em relacionar-se com a cidade. A praça era território de brincar com os filhos e onde, animada, ela fazia compras na feira livre de domingo. A identidade dela em Bebedouro foi se consolidando como uma mulher alegre, dedicada à família e sempre de braços abertos para novos relacionamentos e amizades. Do verdureiro da feira, passando pela manicure, pelo lixeiro, o pessoal da padaria e as atendentes de lojas de departamento, Zita era amiga de todo mundo. As famílias das pacientes de Jaziel também se tornavam amigas da família.

Apesar da rotina cheia de atividades nos cuidados com a casa e as crianças, May tinha energia para muito mais. Nos aniversários dos filhos, as festas reuniam todos os colegas de classe de cada um. Ela se alegrava com a algazarra da meninada e não media esforços para agradar.

Gostava também de passear no centro da cidade no final da tarde. Nestes momentos, além de fazer compras e cumprir com alguns outros compromissos, aproveitava para conversar com todas as pessoas que conhecia. O assunto predileto de Zita era falar dos filhos e netos, dos quais tanto se orgulhava.

Zita, que nunca cozinhara antes, só foi entrar na cozinha pela necessidade surgida com o papel de mãe. Assim, ela pesquisava novas receitas em revistas, pedia receita para as amigas, assistia a programas de TV para aprender e depois aprimorar o cardápio. Com o tempo, o ato de cozinhar tornou-se um modo de nutrir a todos também de amor. Muitas vezes mandava mensagens de voz para os filhos já casados oferecendo uma marmita sempre saborosa. Nas visitas às casas dos filhos, ou quando algum dos que moram fora iam visitar os pais, May fazia questão de preparar os pratos prediletos de cada um.

A hora das refeições era um momento sagrado para May; queria todos juntos à mesa. Como fazia suas refeições vagarosamente, alguém sempre precisava ficar na mesa com ela, que dizia ter horror a comer sozinha. Durante toda a vida, a reunião da família em volta da mesa foi mantida. Com o casamento dos filhos, as reuniões passaram a ocorrer nos finais de semana e em datas comemorativas. A Páscoa era tempo da tradicional bacalhoada. Em junho, tinha festa junina, com todos os quitutes e guloseimas. Nos Natais, todos já esperavam o delicioso frango ao catupiry e o pudim na sobremesa.

Apesar de tantas andanças, a origem nordestina nunca abandonou a trajetória de Zitinha. Ela preservou muitas amizades no Ceará e no dia a dia usava expressões que sempre trouxe consigo. Para ela, mandioca (também conhecida em algumas regiões do Brasil como aipim) sempre foi macaxeira. Alguns ditados populares aprendidos por lá eram citados frequentemente por ela, tais como “quem não pode com o pote, não pegue a rodilha”; “fulano não prega prego sem estopa”; “ninguém perde por ser humilde”. Tinha também a corriqueira frase “são loucas e a família sabe”, usada para fazer referência às filhas.

Outra faceta de May era o amor pelas plantas. Num pequeno jardim da segunda casa da família em Bebedouro ela cultivava várias espécies. Regar, podar, adubar e saborear aquele pedaço da casa era uma de suas alegrias. Durante a pandemia Zita e Jaziel tiveram o jardim como companhia, e quando surgia alguma flor logo tiravam fotos e enviavam aos familiares.

Zita sempre foi uma mulher muito saudável. Nunca tomou nenhum remédio nem fazia acompanhamento médico de rotina, embora seus filhos fossem médicos. Certa vez, a filha Cristiane propôs que ela fizesse um exame de densitometria óssea. De pronto ela respondeu brincando: “Não, nordestino tem osso forte. Eu sou cangaceira e tenho osso forte. Eu não tenho nenhuma doença e não preciso fazer exame nenhum.”

Cristiane lembra que muita gente se aproveitou do fato de ser profissional de saúde para antecipar o início da vacinação contra a Covid-19. Zita e Jaziel, apesar de médicos, não acharam apropriado tomar a vacina destinada aos profissionais da saúde, pois já estavam aposentados. Assim, decidiram aguardar a tão demorada vacina para os idosos. Dessa maneira, quando foi infectada pelo vírus, recebera somente a primeira dose do imunizante.

Durante muitos anos, os cuidados com os netos enchiam os dias de atividades e o coração de Zita de afeto. A cada um os seus mimos, conforme o coração dela mandasse. Desde o nascimento de Leonardo, o primeiro filho de Roberto, nunca foi diferente. May lamentava que o convívio com Leonardo não pudesse ser tão intenso como o que mantinha com os outros netos.

Lucas, Luiza e Rafael, filhos de Luciana, acompanharam Zita durante muitos anos de sua vida. O mesmo zelo dedicado aos filhos foi direcionado a eles.

Durante a pandemia, a maioria da família, em respeito às orientações sanitárias, não viu Zita presencialmente. Os filhos Paulo e Cristiane, bem como os netos Felipe, Henrique, João e Tiago, que moram fora de Bebedouro, somente tiveram encontros virtuais com ela. A possibilidade de encontros presenciais aconteceu com a filha Luciana e os filhos, bem como com o filho Roberto, a esposa Daniela, sua nora muito amada, e a netinha Isabela, que encantava Zitinha.

Dona de muitas risadas, Zita fazia de tantos momentos uma festa. Era o que acontecia nos encontros com a neta Isabela. A avó dizia bem alto: “Loucura!”. E a criança, ainda aprendendo a falar, devolvia um “loucula”, entre muitas gargalhadas de parte a parte. May pôde conhecer a neta Carolina, a outra filha de Roberto, por imagens de ultrassom.

Foi o neto João quem, num poema, resumiu o jeito de ser da avó. Em seus versos e rimas ele sintetiza:

VÓ ZITA
Doce e meiga... E que coração!
Ajuda a todos sempre que consegue
Com um coração gigante em que cabia tudo de bom
Sempre pensando nos outros e colocando-os acima de si
Todo mundo a conhecia só por tentar ajudar
Mas ainda existem muitas coisas que a destacavam: a doçura, o amor, a paixão, a gentileza
Onde passava, nasciam flores de todos os tipos e formas
Quando alguém ficava triste o mundo todo desabava
Sempre queria o bem
Não queria que ninguém brigasse, só que todo mundo se ajudasse
Também ajudando o que brigasse, falando para se acalmar, que estava tudo bem
E dava um abraço para acalmar o nervoso
Agora vive em nossos corações, dormindo tranquilamente.

Como diz o poema, Zita-May segue viva nos corações dos filhos e de tantos outros onde plantou e cultivou muito amor: no exercício da Medicina pelos filhos Paulo e Cristiane; nas lembranças do sabor do pudim de leite condessado preparado por ela; no crescimento dos netos; no sono tranquilo da neta Carolina, no mesmo berço que embalou as noites dos filhos e outros netos. E, como não poderia deixar de ser, na saudade apaixonada de Jaziel.

Zita-May nasceu em Senador Pompeu (CE) e faleceu em Barretos (SP), aos 82 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Zita-May, Cristiane Pittelli. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Fernanda Ravagnani e moderado por Ana Macarini em 21 de fevereiro de 2022.