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Fernando Morais de Melo

1957 - 2021

Amava voar. Fã do Santos FC, de leitura e de café com leite; construiu, além da casa, um legado de amor.

Filho grato, pai presente, esposo fiel, homem íntegro, amigo leal e pessoa maravilhosa.

Filho de pais portugueses, herdou o amor do pai pelas terras brasileiras, que pôde chamar de lar. Aproveitou a infância como toda criança deveria fazer, aprendendo com os pais os caminhos do amor que um dia repassaria aos próprios filhos.

Começou a trabalhar muito jovem para ajudar a mãe e sempre disse, com muito orgulho, que da forma como recebia o dinheiro (em um pacotinho) ele o entregava para a mãe. Foi funcionário da Light S/A e são de lá algumas das lindas lembranças. Participou da equipe de tênis de mesa e foi vencedor em um dos campeonatos, com direito a foto no jornal da empresa e felicitações pela vitória mais que merecida.

Após sair da empresa, abriu uma tapeçaria com seu irmão; até hoje seus trabalhos são admirados. Impressionava a facilidade com que aprendeu a costurar e encantava a todos com suas obras de arte em forma de tapetes.

Conheceu Zeni em um baile; a festa acabou, mas o amor jamais teve fim. Sentia admiração e orgulho pela mulher forte e determinada com quem escolheu dividir a vida durante trinta anos. Juntos ensinaram que não importa o quão difícil é a vida, quando a gente pode dividir com quem se ama, ela acaba ficando leve e bonita.

A paixão transbordou e três brotinhos de amor surgiram para alegrar a vida do casal. Marcelo, Camila e Marcos vieram para acrescentar ainda mais afeto a uma relação que já era encantadora. Os pais deram aos filhos o melhor que puderam, e os filhos bem sabiam reconhecer o esforço dos pais. Formaram uma família maravilhosa, que aprendeu com as dificuldades que não importa quão cinza foi o dia, sempre haverá um amanhã ensolarado esperando por quem tem fé.

Era policial civil, profissão da qual tinha orgulho e a executava com maestria. Com a chegada dos filhos, precisou construir sua casa e enfrentou o desafio com Zeni, cheios de vontade de vencer. Em suas folgas, construíram a casa de três andares, onde cada coluna e piso foi feito com muito suor e força de vontade.

Papai babão, registrou toda a infância dos filhos em filmagens. Eram gravações da rotina, festas de família e momentos incríveis que compartilharam. Mesmo sem esbanjar dinheiro, uma coisa nunca podia faltar: as gravações. Registrar a infância era a prioridade do papai.

Íntegro como apenas Fernando sabia ser, tinha pavor de desonestidade. Certa vez, nos tempos em que recargas de celular ainda eram feitas com bilhetes, Fernando fez uma compra de recarga no valor de R$10; por engano, a atendente lhe deu dois bilhetes. O policial só tomou conhecimento do erro em casa e, então, no dia seguinte, foi até a loja devolver o bilhete extra. Nesse deslocamento, gastou quase o valor do crédito, mas isso para ele não importava. Talvez o erro fosse descontado do salário da atendente; talvez ela fosse demitida; talvez também não acontecesse nada e o equívoco passaria despercebido, mas não aos olhos de Fernando. Chegou à loja e devolveu o extra à atendente, com a consciência limpa que só a honestidade traz.

Enfrentou muitas dificuldades ao longo da vida, como a depressão que o assolou depois do falecimento dos pais e o câncer de mama que a esposa enfrentou. Parou muitas vezes para tomar fôlego diante das subidas da vida, mas nunca desistiu porque tinha a impressão de que lá de cima a vista era mais bonita. Estava certo.

Aliás, falando em altura, Fernando queria conhecer o Rio de Janeiro, a Estátua da Liberdade e voar de balão na Capadócia. Infelizmente, não alcançou esses sonhos, mas voou de balão com a família em Boituva. O brilho nos olhos, vendo tudo lá do alto, foi tão encantador quanto o passeio em si. Fernando amou a sensação de voar.

Das paixões da vida, trazia o Santos como time do coração, amava a sua caminhonete laranja e era amante de livros e histórias. Gostava muito de futebol e ia todo sábado pela manhãzinha até o Clube Atlético Juventus para jogar bola. Era goleiro e ganhou vários troféus e medalhas por ser o melhor em campo. Fernando era também apaixonado por animais, adorava um picolé e um café com leite, sua felicidade ao receber um bombom ou chocolate era indescritível.

Curioso, apreciava tecnologia. Foi com ele que os filhos se conectaram pela primeira vez à internet. Estava sempre no bairro de Santa Ifigênia montando os melhores computadores. Através da rede, conheceu lugares incríveis sem sair de casa. Visitou os Estados Unidos e o Grand Canyon com a família, tudo pelo Google Earth! Amante de música boa, tinha sempre Legião Urbana, RPM, Raul Seixas, Abba ou Pink Floyd na playlist.

Desde o início da pandemia, Fernando e a família costuraram máscaras de algodão para doar aos vizinhos e a conhecidos. No dia de sua partida, teve um sonho, como se fosse real, em que uma santa o abraçava. Pouco antes de partir, Fernando disse à médica que o acompanhava que tinha muito orgulho dos filhos e da esposa.

Fernando soube aproveitar a vida. Aproveitou tanto, que conquistou muitos corações que, agora com a sua ausência, ficam um pouco mais apertadinhos. O policial foi funcionário, empresário e teve outras profissões, mas as lições de amor e honestidade sempre foram as mesmas. Fernando deixa saudade em todos que dividiram a vida com o homem de muitos trabalhos, mas de um só coração, que mais pareciam dois ou dez, de tanto amor que carregava dentro de si.

Renato Russo dizia em uma de suas canções: “mas é claro que o sol, vai voltar amanhã...” O sol, assim como o recomeço, podem não voltar amanhã ou depois, mas em alguma hora hão de aparecer. Do outro lado, Fernando segue olhando e intercedendo pelos seus como sempre fez. Na verdade, um pouco mais feliz. Ele pode voar sempre que tem vontade. Fernando, agora, é assim como um passeio de balão: leve e encantador por natureza.

Fernando nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 64 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Fernando, Camila Morais de Melo. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Bárbara Aparecida Alves Queiroz, revisado por Acácia Montagnolli e moderado por Rayane Urani em 22 de março de 2021.