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Itamar Pires Alves

1936 - 2020

Diariamente, esperava o horário exato para ir comprar pão. Saia de casa pontualmente às quatro da tarde.

Um homem alto, forte, de olhos claros, que com o passar do tempo foram sendo escondidos pela queda das pálpebras e ficando cada vez mais pequeninos. Assim era Itamar, que, reservado e dono de um coração amoroso, enfrentou os desafios apresentados pela vida e foi capaz de construir e preservar afetos.

Antes de mais nada, é importante esclarecer um fato peculiar. Apesar de "Itamar" ser o nome de registro, ele era conhecido, por quase todo mundo, como Mauro. Recém-nascido, o filho de Seu Olímpio e Dona Jacinta recebeu o nome que consta em seus documentos. Contudo, a madrinha de batismo, Dona Angélica, achou que Itamar era um nome “difícil de falar” e, por conta própria, disse que iria chamar o afilhado de Mauro. E o nome pegou.

A infância vivida juntamente com os 13 irmãos transcorreu em Presidente Juscelino. Como era comum naquele tempo, Itamar começou a trabalhar na roça muito cedo. Em meio aos desafios enfrentados pela numerosa família no interior mineiro, Itamar, nos quintais por onde passava, conseguiu também vivenciar o universo infantil e pôde estudar até a quarta série.

Um fato pitoresco acontecia nos dias em que o almoço demorava a alcançar os que trabalhavam nas plantações e no cuidado com os animais. Para amenizar a fome até a chegada das marmitas, ele e seus companheiros comiam o sal usado para alimentar os bois e depois iam até o rio onde bebiam muita água.

Mais tarde, Itamar deixou sua cidade natal e mudou-se para Belo Horizonte. Na capital mineira, foi pedreiro, porteiro e dono de um bar. O estabelecimento faz parte das memórias de Débora, a filha mais nova. Localizado bem perto da escola onde ela estudava, o botequim era ponto de parada obrigatório quando terminavam as aulas. Ela chegava e ia logo procurar o pote com paçoquinhas, que comia sem nenhuma censura do pai.

A paixão pelo futebol começou na juventude. Itamar era bom de bola e chegou inclusive a disputar campeonatos de várzea em Belo Horizonte. Com o tempo, tornou-se atleticano e a paixão pelo Clube Atlético Mineiro, um dos principais clubes de futebol do Estado, foi alimentada durante boa parte da vida. Um de seus orgulhos era o título do Campeonato Nacional de 1971 conquistado pelo time de preto e branco. E seu sonho era poder ver o clube novamente campeão do certame, o que acabou não acontecendo. Outro desejo alimentado por Itamar era o de poder assistir à inauguração do estádio do Atlético, a Arena do Galo, em construção nas proximidades de onde morava. Também não deu tempo.

Débora conta sorrindo que uma das alegrias do pai era “ficar me zoando quando o Atlético ganhava do Cruzeiro”. De forma inexplicável, Débora é cruzeirense e torce para o grande rival do Atlético. Assim, dia de clássico sempre terminava com o torcedor do time vencedor aproveitando para fazer troça.

Com Dona Clarinha, teve as filhas Denise, Daniela, Daisy e Débora. Do seu jeito, sabia demonstrar o carinho que tinha por elas e pelos netos Camilla e Arthur. Alguns dos parentes moram bem longe da Capital, na cidade de Uberlândia, no Triângulo Mineiro. Ansioso, ele esperava por visitas e apesar de seu jeito reservado e contido, o momento da chegada era hora de um belo sorriso.

Quando sabia que os netos chegariam, Itamar ia logo pedindo para comprar polpa de açaí e leite condensado para a “Milinha” — jeito carinhoso como chamava a neta. Para Arthur, não podia faltar pipoca e farinha láctea “porque ele adora”.

Ainda sobre a relação com os netos, Seu Itamar ficou muito empolgado quando Camila estava se preparando para tirar carteira de habilitação. E sempre que falava com ela, dizia: “Milinha, é você que vai levar o vô para passear”.

Dia de aniversário dos parentes que moravam longe era dia de gravar e mandar vídeo. Para isso, ele contava com a ajuda de Débora, que era sua assistente. E apesar das explicações da filha, que dizia que após o sinal ele poderia começar a falar, Itamar, antes de começar a se dirigir ao destinatário, sempre perguntava se a pessoa já estava ouvindo.

Outra peculiaridade dos vídeos de Itamar é que ele parecia estar conversando com a pessoa para quem o vídeo seria enviado. E assim, ele mesmo fazia e respondia perguntas. Quando o neto Arthur completou 18 anos, uma parte da fala dele foi mais ou menos assim: “Ei Arthur, tudo bem?... Bem, né?... Completando 18 aninhos, né?... Vai sair? Onde vai ser o baile?... Ué, não vai ter baile?...”

Quando alguma filha perguntava se ele estava com saudade, Itamar, em tom de brincadeira respondia que não, "por mim você pode ficar por aí”. Mas no fundo de seu coração amoroso, a verdade era que ele estava sempre à espera da visita de uma delas.

Como era muito reservado e pouco falava sobre suas atitudes de amor e carinho, alguns fatos só vieram à tona depois de seu falecimento. Um exemplo eram as visitas regulares que passou a fazer à irmã Filomena depois que ela perdeu um filho. Nas visitas, fazia questão de levar balas e doces para os sobrinhos.

No seu jeito humano de ser, Itamar sempre teve um carinho especial pelas crianças. Não aceitava que ninguém maltratasse os pequenos. Entre as formas que encontrou para expressar esse seu carinho estão as muitas contribuições que fazia para instituições que cuidam de crianças em tratamento de câncer. Se alguém questionasse se o dinheiro da doação estava ou não sendo empregado corretamente, Itamar não pestanejava e dizia que estava doando de coração e que se alguém fizesse algum malfeito “Deus vai cobrar dele depois".

O carinho e a dedicação de Débora com o pai produziam um acontecimento regular. Nesses momentos, chamados de “dia da faxina”, era hora de cortar as unhas, tirar os pelos das orelhas e tomar um belo banho. De calção, ele ia para o banheiro e a filha esfregava as costas e cuidava também de uma limpeza mais caprichada nos pés. No comum dos dias, vez por outra Itamar pedia creme para o cabelo. No geral, ele não era dos mais vaidosos, mas fazia questão de que os fios grisalhos estivessem sempre ajeitados e lisos.

Como forma de retribuição, todos os dias, quando Débora voltava do trabalho, recebia um mimo. Do portão ela já gritava perguntando pelo seu bebê e ele, lá de dentro — levantando o dedo indicador —, respondia “estou aqui”. Numa atitude de puro afeto descascava duas laranjas para a filha. Com uma particularidade. Para que ela pudesse chupar a fruta fazia um corte na parte superior criando uma espécie de cone para dentro da laranja. Em Minas Gerais, essa maneira de abrir a laranja é chamada de “Bico da Vovó”. Enquanto ficavam ali juntos, como amante de música sertaneja, às vezes, Itamar pedia para ouvir a música “Rancho Fundo”, que de tão presente nessas ocasiões transformou-se numa espécie de música dos dois.

Itamar cozinhava bem e seus pratos eram sempre preparados com muito tempero e óleo. A dobradinha e o pudim de pão que preparava eram inigualáveis. Outra guloseima muito apreciada pelas filhas, particularmente por Daisy, recebe o nome de “arroz mole”. Trata-se de um arroz preparado com bastante água para que os grãos fiquem bem cozidos.

Pré-diabético, seu Itamar tinha uma dieta com restrição de açúcar. Mas sua sobremesa favorita era doce de leite. Às escondidas, comprava barras de chocolate e colocava no guarda-roupa do quarto. Foram muitas as vezes em que essa estripulia foi descoberta. É que o prazer de saborear o chocolate era tamanho que seu Itamar estalava a língua no céu da boca de satisfação. A felicidade dele era tanta que, muitas vezes, quem notava o que estava acontecendo não tinha coragem de anunciar que percebera a quebra da dieta.

Caseiro, ele não gostava de sair nem para comemorar seus aniversários. Mas para celebrar a data, nesses dias, ele costumava pedir alguma comida comprada em restaurantes das redondezas. E a escolha era sempre lasanha à bolonhesa, que ele muito apreciava.

Uma mania de seu Itamar não pode deixar de ser narrada. Ele saía de casa todos os dias, pontualmente às quatro da tarde, para comprar pão. Na espera do horário exato, muitas vezes sentava-se no sofá e ficava de olho no relógio. Se alguém perguntasse o que estava fazendo, seu Itamar respondia que estava esperando a hora de ir ver as “meninas de batom” — expressão que inventou para se referir às funcionárias da padaria.

Numa memória emocionada, Débora conta que a lembrança mais marcante do pai foi o seu sorriso, acompanhado de um afago nas mãos, durante o tratamento contra a Covid-19. Ela conta que, naquela situação, o sorriso dele foi o mais bonito do qual consegue se lembrar. Tão belo que teve ares de algo nunca visto antes. Depois que tudo passou, ela intui que aquele foi um momento em que Itamar fez uma espécie de despedida, desejando um “até breve”.

Itamar segue vivo todas as vezes em que Débora ouve a canção "Rancho Fundo" e quando, no transcorrer de sua vida, se pergunta: “Será que o pai ia gostar disso"? Nas gargalhadas que ainda hoje acontecem quando alguém vê um dos vídeos de "Feliz Aniversário" gravados por ele. Nos ensinamentos de integridade e correção deixados por ele na expressão: “Se um real é seu, é seu. Se é meu, é meu”.

Itamar nasceu em Presidente Juscelino (MG) e faleceu em Belo horizonte (MG), aos 84 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Itamar, Débora Silveira Alves Ferreira. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 29 de junho de 2022.