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João Nicolau de Almeida

1940 - 2020

Com seu violão de sete cordas e sua voz grave, João Macacão encantava os lugares por onde passava com muita música.

Entrelaçada às sete cordas de seu violão, a vida de João Macacão deu a ele muitos amigos e o levou a muitos lugares. Com a musicalidade que habitava nele, João tornou-se um encantador da beleza da poesia da vida em seus acordes e harmonias.

Alegre e cortês, gostava de praticar gentilezas e dizer coisas que levassem felicidade às pessoas. Assim, certa vez, ao encontrar uma mulher usando um colar de pérolas, disse: “Você está vestindo você!”.

Todas as manhãs, ao acordar, João conversava com Deus. Ele se sentava na borda da cama, ficava quieto e falava com o Criador. Um ato sem gestos rituais, marcado apenas pelo silêncio e uma volta para si mesmo. Marilena, a esposa, relembra que este hábito fortalecia João. “Ele ficava tranquilo e pronto para enfrentar o cotidiano, pois confiava que Deus o ajudaria a resolver suas questões”.

Com seu jeito muito simples, gostava de andar bem vestido, com a camisa para dentro da calça e com o sapato engraxado. Uma de suas manias era sempre limpar a cadeira antes de assentar-se para não sujar a roupa.

Importante contar como o nome de batismo — João Nicolau de Almeida — escolhido pelos pais, Arquimino e Dalila, foi caindo em desuso. É que João também gostava muito de futebol e participava de campeonatos nos campos de várzea paulistas entre times formados por operários de empresas de São Paulo. Um primo de João, que também jogava bola na várzea, foi apelidado de “Zé Macaca” porque conseguia dar uma bicicleta e terminar em pé. Certa vez, João e o primo jogavam e apareceu um sujeito, que era boxeador, e disse: “Você é o Macaquinha e você é o Macacão”. Quando João contava essa história, ele fazia com as mãos os gestos de um lutador de boxe e dizia: “Quem vai contradizer um 'boxeur'?”. E assim, o apelido ficou e o certo é que João gostou. Gostou a tal ponto que esse era o seu nome artístico. (Se alguém chegar numa roda de choro do bairro da Vila Madalena em São Paulo e perguntar por João Almeida, ninguém vai saber quem é).

Os pais de João eram sitiantes em Presidente Bernardes, no interior paulista, e tiveram dez filhos. Foi por lá que na infância, numa vida muito humilde, João pôde brincar no quintal e conviver com a poesia cotidiana da natureza. Para a escola ele não teve tempo, pois, como era comum naquela época, os filhos começavam a trabalhar cedo para ajudar no orçamento doméstico. Desse jeito, concluiu apenas o então Curso Primário.

A musicalidade de João Macacão era nata. A paixão pelo violão foi surgindo em rodas de seresta das quais participava. Tocando instrumentos de percussão, tais como pauzinho rumbeiro, para marcar o compasso dos boleros, ou bongô, pandeiro e bateria, para acompanhar choros e sambas, ele observava o violonista da roda também chamado João. E ficava fascinado com as harmonias que o amigo construía no instrumento.

Foi então que João Macacão passou a frequentar o campo de futebol que ficava nas redondezas de sua casa, não para jogar bola, mas por outra razão. Ele pegava um violão e ia sozinho para o campo e ficava horas inteiras tirando som do instrumento. Pouco a pouco, percebeu que levava jeito e com o dinheiro que ganhava com o trabalho de encanador industrial comprou seu primeiro violão, um “Rei dos Violões”, e nunca mais parou de tocar.

Ainda sobre o primeiro violão, um fato não pode deixar de ser contato. No trabalho como encanador industrial, João passou um tempo em Manaus. Foi participar da montagem da fábrica de uma grande fabricante de cervejas. Certo dia, ao chegar ao alojamento, não encontrou seu instrumento. Muito triste, João procurou um advogado da região, que acabara ficando seu amigo numa roda de seresta e choro. Empático, o advogado afiançou a João que se o violão ainda estivesse em Manaus ele seria encontrado. Algum tempo depois, o instrumento foi achado numa embarcação no porto da capital amazonense. Marilena conta que a "senha" para identificar o violão de João foi que as pessoas comentavam sobre “um violão que ninguém sabia por que tinha sete cordas”.

Bom que se diga que tudo o que João sabia sobre o violão de sete cordas era fruto de um aprendizado intuitivo e autodidata a partir da observação e compartilhamento de saberes com amigos violonistas. Sem saber ler partituras, ele identificava de ouvido o tom e a harmonia para acompanhamento das canções, sempre tendo como objetivo reproduzir a técnica e a baixaria do músico carioca Horondino José da Silva, também conhecido como Dino Sete Cordas e a maior referência brasileira no instrumento. Aos poucos e com muito estudo, conseguia executar as melodias e ao mesmo tempo melhorar sua técnica de execução dos acompanhamentos.

A grande oportunidade de ter a música como profissão aconteceu em meados da década de 1970, por meio do amigo Osvaldo Colagrande, durante ensaios para a formação de um conjunto que acompanharia o cantor Sílvio Caldas. De maneira descompromissada, João participava dos ensaios. Num belo dia um dos violonistas não apareceu e João o substituiu no ensaio. O amigo Osvaldo gostou tanto que o convidou a participar do conjunto. Por medo de não conseguir acompanhar o grupo, a primeira reação de João foi dizer não. Contudo, o amigo Osvaldo insistiu e explicou que bastava João levar um gravador e uma fita K7 para registrar o ensaio. Confiante no talento e responsabilidade de João, completou que depois bastava estudar em casa. Tudo deu certo e João Macacão participou do conjunto que acompanhou Sílvio Caldas até o final dos anos 1990.

Um outro amigo que era considerado por João como “mais um dos pais que tive nessa vida” foi Paulo Vanzolini. Por recomendação de Sílvio Caldas, o amigo abriu outras portas para o violão de sete cordas de João depois da morte do cantor. Numa bela feita, Paulo contou a João que, antes de morrer, Sílvio Caldas tinha pedido para que ele cuidasse de João quando ele não estivesse mais por aqui.

Graças a outra amizade também proporcionada pela música, João Macacão pôde gravar seu primeiro CD, batizado de “Serestando”. Com um detalhe muito especial: agora como cantor. Ao longo do tempo, muitos amigos admiravam também a voz grave e afinada de João. E o incentivaram a cantar. O estúdio foi viabilizado pelo amigo Marquinho Mendonça que conversou com Beto e Sérgio, os donos do estabelecimento onde aconteceram as gravações.

Tinha também as saídas para comer peixe com os amigos João Camargo e Roberto, dois companheiros inseparáveis desde os tempos em que João Macação morava em Osasco, São Paulo. Uma noite por semana os três tinham encontro marcado para saborear um pescado e colocar as conversas em dia.

A razão para tantas amizades era a generosidade de João na vida como um todo e no mundo da música de forma particular. A esposa explica que “quase toda a geração do choro paulista dos dias atuais começou com a ajuda do João”. Quando percebia que alguém podia deslanchar no mundo musical ele convidava para que fosse estudar com ele em sua casa. Assumindo o lugar de uma espécie de pai, dava conselhos e repreendia aqueles que eventualmente exageravam na bebida. No olhar de Marilena, esse modo generoso era, na verdade, “uma maneira de compartilhar o dom divino que recebera e trazia consigo”.

O certo é que, ao longo da vida, o violão levou João a muitos lugares. Sempre com o mesmo esmero ele tocou na favela; na casa de jornalistas, desembargadores, advogados e vizinhos; em palácios governamentais; nos bares da noite e nos palcos; em velórios de amigos da música como Sílvio Caldas e Noite Ilustrada. A música, que inicialmente era meio de “ganhar um troco”, foi ganhando espaço e o Encanador Industrial passou a prestar serviços de encanamento doméstico apenas para complementar o que ganhava tocando.

Na vida pessoal, João casou-se duas vezes. Do primeiro relacionamento, com Idalina, nasceram as filhas Ivone, Vânia e Ana Paula. Do casamento com Marilena vieram André e Sofia. Teve ainda três netos.

Foi também por meio da música que João conquistou seu segundo amor. Marilena conta que conheceu João num bar da Vila Madalena chamado “Bom Motivo”, do também amigo Roberto Lapiccirella. Numa noite ele ofereceu uma canção para ela. Aos poucos o amor foi crescendo e João ganhou um violão novinho da namorada apaixonada. Rapidamente os dois resolveram se casar. Durante o relacionamento brigaram uma única vez e poucas horas depois tudo estava resolvido.

Um fato engraçado marcou a espera do nascimento de André. Tudo aconteceu na Praça Benedito Calixto, no bairro paulista de Pinheiros onde, há décadas, aos sábados, acontece uma roda de choro durante uma feira de artesanato. Com seu jeito espontâneo de se comunicar, num determinado instante, justificando seu amor e zelo pelo instrumento que tocava, João disse “com a minha mulher pode fazer o que quiser, mas no meu violão ninguém põe a mão”. Marilena, que estava ao lado, reagiu com um certo espanto indagando a João como é que ele podia falar assim da própria esposa. Na brincadeira, João fazia referência à letra da música “Não Põe a Mão”, que diz assim: “Não ponha a mão no meu violão. Você pode sambar, se quiser com aquela mulher. Mas por favor, não ponha a mão no meu violão. Não ponha a mão”. O episódio terminou em muitas gargalhadas.

Ao longo do tempo a relação de João com os filhos foi ganhando seus contornos peculiares. Com André, além da proximidade associada à música, havia também a parceria no amor pelo time do Corinthians. Mas o carinho paterno por Sofia também era evidente. Tanto que, carinhosamente, João a chamava de “Sofia, a Bela”. Era assim que o nome dela estava gravado na agenda do telefone dele.

Graças à convivência com o pai e ao ambiente musical, desde pequenos, tanto Sofia como André ouviram música brasileira a partir de um repertório que a geração deles não conhece. Quando tinha aproximadamente 5 anos Sofia já era admiradora da cantora Dalva de Oliveira e entre as músicas que gostava e sabia a letra estava a canção “Estrela do Mar”.

André desde pequeno foi demonstrando sua musicalidade. João e Marilena incentivaram essa característica levando o menino para aulas de musicalização infantil. O primeiro instrumento dado de presente a ele foi uma escaleta, um pequeno teclado que produz som a partir do sopro.

Com os filhos já crescidos, na gravação do seu primeiro CD, em algumas faixas do repertório do disco, João teve o privilégio de ser acompanhado por André no clarinete e pela voz de Sofia. Um momento repleto de encantamento reunindo João e os filhos. Nos preparativos para a gravação ele convidou Sofia para cantar e André para tocar na música “A Saudade Mata a Gente”. Na faixa, inicialmente João canta com sua voz grave; a seguir, um solo harmonioso é feito por André tocando clarinete com o acompanhamento do conjunto. Na sequência Sofia canta com voz suave e leve de menina-moça. Em certa altura ela diz "canta comigo, pai" e os dois cantam juntos. Ao final da gravação, orgulhoso, João agradece a participação dos dois e abençoa os filhos.

Outro momento emocionante aconteceu no Bar do Cidão, na Vila Madalena. Sofia devia ter uns 7 anos e o pai convidou-a para cantar “Carinhoso”. Com o acompanhamento do pai e do conjunto regional, a canção ia sendo interpretada pela voz infantil e muito afinada de Sofia. Pouco a pouco, os frequentadores do bar, ouvindo toda a beleza do que se passava, foram silenciando. No ar restou a canção na voz baixinha da cantora mirim. Ao final, em meio aos aplausos, o coração e o olhar de João eram pura emoção e orgulho.

Marilena conta que no cotidiano da casa João sempre estava com o violão por perto. Entre as memórias dele, que ela guarda com carinho, estão os momentos em que João pedia que ela escolhesse uma música para cantar. Ela escolhia, começava a cantar e ele acompanhava como se já tivessem ensaiado anteriormente.

O corintiano João Macacão, que gostava de se despedir de todos com a expressão “um beijo no seu coração”, segue vivo na musicalidade do filho André... Na “Roda João Macacão”, que acontece em sua homenagem todas as segundas-feiras num bar da Pompéia na capital paulista... Nas memórias calorosas de tantos amigos que fez nessa vida por meio da música e de seu violão de sete cordas.

João nasceu em Presidente Bernardes (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 80 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela esposa de João, Marilena Fajersztajn. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 3 de julho de 2023.