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João Parreira

1972 - 2021

Com seu coração generoso e habilidade para liderar, fez a diferença na vida dos jovens de sua comunidade.

Ele foi um homem de muitas realizações. A mais marcante delas foi sua atuação como líder comunitário e gestor de um projeto social no Jardim Peri, bairro simples da Zona Norte da cidade de São Paulo, que atendia mais de 120 crianças carentes.

A ONG que liderava era a Futebol Para Todos e foi idealizada por ele no ano de 2014, concretizando seu antigo desejo de ajudar as crianças carentes de 7 a 16 anos da vizinhança, que, pela falta de espaços de lazer, formação e entretenimento na comunidade, eram aliciadas pelo crime. Nela, Parreira foi o coordenador, o técnico, o orientador profissional, o motorista e até o roupeiro, lavando ele mesmo os uniformes usados pelas crianças nos jogos oficiais que faziam pelo time do Jardim Peri.

A preocupação de Parreira com as crianças e os adolescentes do Projeto era tão grande que, quando uma criança se encontrava em situação muito vulnerável, ele pedia autorização para a família e a levava para morar em sua casa, para viverem sob o mesmo teto.

Esta homenagem foi tecida como o mesmo carinho de uma colcha de retalhos, contendo o depoimento emocionado de muitos personagens, a começar pelo filho mais velho, Abner Parreira, que relata: “A ONG era a grande razão de viver do meu pai. No início, ele tirava dinheiro de casa para poder ajudar as crianças, comprando chuteira, mandando fazer uniformes e alimentando as que treinavam no time. O que mais me assustava e admirava é que ele tratava cada criança como filho mesmo. Não fazia distinção entre a gente, que era filho de verdade, e a molecada do Projeto. Certamente, era a melhor pessoa que conheci na vida!”

“Meu pai fazia toda a correria. Arrumava transporte, pedia ajuda dos amigos, ficava nas filas para receber as doações e distribuir aqui no bairro. Não media esforços para ajudar os outros. Nos dias de jogo, ele pagava a gasolina "do bolso" e enchia os nossos dois carros com as crianças e as levava pra todo canto de São Paulo para participar dos jogos e das competições”. Até no meu casamento ele chegou atrasado, porque estava numa competição com os meninos da ONG naquele dia.”

A esposa, Maria de Fátima, também destaca a importância do seu trabalho: “Meu marido era chamado para resgatar algumas crianças e jovens do crime e de situações muito delicadas de fragilidade social. Algumas ele trazia para morar com a gente, para não se perderem, quando via que precisavam de mais carinho e atenção do que tinham em casa. Foram pelo menos sete ou oito crianças que ficaram temporadas inteiras com a gente e ele chamava de filho, como todos os outros”.

Ela conta também como o coração generoso de João comandava suas ações: “Quando ele fazia compras para a nossa loja de roupas, ele sempre comprava dois ou três pares de chuteira escondido de mim para doar às crianças da ONG. Quando eu descobria, tentava explicar: ‘Parreira, a loja é nosso único ganha pão para a gente sustentar a casa. Precisa separar as coisas’. Ele respondia com o olhinho brilhando: ‘Onde o coração está, a alma também está’. Ali eu sabia que a vocação de vida dele eram as crianças. Não adiantava argumentar. E, no fundo, me dava um orgulho enorme tê-lo do meu lado”.

Os esforços pessoais do Joãozinho, como era conhecido na comunidade do Peri, renderam muitos frutos. Pelo menos quatro atletas do projeto tornaram-se jogadores profissionais e assinaram contrato com clubes como Corinthians, Fluminense e Nacional. Um desses jovens talentos é Cauã Aguiar, atleta do Fluminense Sub-23 e que, no dia da sua morte, postou este relato emocionado nas redes sociais:

"Não consigo acreditar que mais uma parte de mim se vai. Meu companheiro, meu amigo, meu pai, meu parceiro de tantas horas, tantas conversas, tantos sorrisos... Meu coração arde e meu mundo fica sem cor ao saber que uma das pessoas mais importantes da minha vida se vai. [...] Como queria que fosse um pesadelo, como queria que esse dia não existisse. Meu maior fã?!... e meu ídolo!! Descansa, eu te amoooo pra sempre", escreveu o jogador.

O sucesso do trabalho de Parreira não se revelou apenas nos jovens assistidos que se deram bem na vida, mas também no time mirim da ONG, que conquistou a quinta posição na edição de 2019 da famosa Taça das Favelas, uma competição organizada pela Central Única das Favelas (CUFA) entre as comunidades carentes da capital paulista.

Vale também destacar que a paixão do líder da família Parreira não era só pelo futebol. Ajudar a comunidade era o que o movia e fazia seus olhos brilharem, segundo os familiares. Ele financiou alguns MCs ("rappers") do bairro em início de carreira e criou um time amador de jogadores de videogame, o Complexo Peri, que ficou na terceira colocação da primeira fase do último campeonato chamado Taça das Favelas Free Fire, também organizado pela CUFA em São Paulo.

Com ajuda da própria CUFA e de jogadores como Gabriel Jesus, do time inglês Manchester City, nascido no Jardim Peri, a ONG distribuía cestas básicas para a comunidade e, com a pandemia, fortaleceu suas ações sociais para ajudar as famílias, não só dos atletas, mas de moradores mais carentes do bairro.

Maria de Fátima revela sua indignação com a falta de assistência adequada quando João contraiu a Covid-19: “Foram dias muito difíceis e acho que meu marido, por tudo que ele fez pela comunidade, merecia ter tido um tratamento melhor naquele momento. O sistema público de saúde é desumano”, afirma.

Por toda a obra desenvolvida pelo comerciante João Parreira, sua morte, aos 48 anos, não deixou um vazio apenas na família formada por cinco filhos e a esposa, mas em toda a comunidade do Jardim Peri. O filho mais velho fala sobre os seus sentimentos: “Ainda dói no peito saber que ele se foi por causa dessa doença terrível. Ele era um instrumento de Deus na Terra. Ajudou a salvar um monte de crianças quem eram aliciadas pelo diabo das drogas e da bandidagem. Eu e meus irmãos temos uma responsabilidade enorme de não deixar o trabalho dele morrer”.

A família se entristece também com o fato de Joãozinho ter morrido dez dias antes do nascimento do primeiro neto, João Pedro, que ganhou o nome do avô antes mesmo de a pandemia se agravar em São Paulo. A nora, Natália, desabafa: “Ele estava todo babão com o primeiro neto que ia nascer. Essa tragédia foi como uma bomba pra todos nós e meu filho vai saber desde cedo o grande avô que ele tinha”.

Foram muitas as homenagens que demonstraram a tristeza da comunidade quando João faleceu. No dia seguinte ao seu enterro, os 120 meninos da ONG se reuniram na porta da casa da família para agradecer o trabalho do mentor. Juntos, eles choraram e lamentaram a partida do “paizão”, como muitos deles chamavam o técnico.

Nego Hélio, um dos jovens ajudados pela ONG que virou cantor e tem conquistado fãs em São Paulo, criou uma música que resume o sentimento da comunidade sobre o trabalho do comerciante, que marcou para sempre a trajetória de vida de muitos do Jardim Peri. A letra diz:

"Você tá fazendo falta
Esperava você ter alta
Tá difícil acreditar que você não vai voltar
Você foi guerreiro
Te desejo um bom lugar.
Eu olho para o céu ao anoitecer
A estrela que mais brilha é você.
Olha como dói, perder um grande herói.
Saudade machuca e corrói".

Com a morte do cabeça da ONG, a família Parreira esteve atordoada, mas diz que não vai deixar o trabalho do patriarca acabar. O filho Abner, de 24 anos, pretende assumir o trabalho social e continuar indo atrás de doações para ajudar a comunidade. No entanto, o trabalho no futebol, que era o coração da ONG, ainda é um desafio para ele, que pouca afinidade tem com a bola e com a motivação de crianças e jovens.

Abner afirma: “Meu pai amava o futebol e era um orador e motivador nato. Ele era tudo no time e sabia descobrir talentos e encaminhá-los. Eu conheço todos os contatos dele no trabalho social, mas, no futebol, a gente quer encontrar algum parceiro que possa auxiliar nesse trabalho. Não é fácil, porque vocação, coração e amor a gente não encontra por aí, andando nas ruas. Mas, lá do Céu, espero que ele coloque alguém no nosso caminho para continuar esse trabalho”.

Para Maria de Fátima, continuar o projeto também é um de seus objetivos: “Não vamos deixar o sonho do João morrer. Enquanto a ONG existir, ele vai estar vivo na vida desse monte de família e na vida desse monte de ‘filho’ que ele deixou órfão aqui no Peri. A gente ainda está tentando resolver e entender os papéis da ONG. Mas o sonho do meu marido agora é nosso e esperamos que outras pessoas surjam no caminho para nos ajudar a continuar esse trabalho”.

João nasceu em Itapejara d'Oeste (PR) e faleceu em São Paulo (SP), aos 48 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela esposa de João, Maria de Fátima Tiburtino Leite Parreira. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 5 de setembro de 2022.