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Levita Pina Lins

1934 - 2020

Gostava de estar cercada das três gerações de mulheres que ajudou criar. Para elas, deixou de herança a força.

Levita teve oito filhos: quatro meninos e quatro meninas. E não é que ela amasse mais as garotas do que os rapazes. Pelo contrário, sua principal paixão era a família e tinha amor para dar a todos. Mas ela sempre soube que é preciso de muita força para ser mulher no mundo e transmitiu esse conhecimento para suas filhas, netas e bisnetas. “Ela sempre se preocupou muito com essa parte feminina da família”, ressalta a neta, Cintia Levita. “Ela dizia que, no nosso mundo, a mulher tem que ser sempre muito mais forte do que o homem para se defender.”

Foi graças a esse ensinamento, que Cintia, a neta mais velha, que tem em seu sobrenome uma homenagem, sentiu confiança para largar o emprego de 15 anos como bióloga e abrir um ateliê para ensinar a crochetar, arte que havia aprendido com a própria avó e que sentiu necessidade de transmitir a outras mulheres como legado. “Nossa, que bonito, que forte que você é, mudar de profissão agora, depois de tanto tempo”, Levita costumava dizer, ao que ela lhe respondia: “vó, você que me ensinou que nunca é tarde”.

“Ela me deu tanta coisa boa e me transmitiu tanto dessa energia feminina”, afirma Cintia. “Sempre impactou muito positivamente a vida da gente. Eu aprendi muito essas coisas dos valores femininos com ela.” Estar cercada de mulheres, especialmente das suas mulheres, para Levita, era essencial.

Adorava tê-las em volta de si, enquanto cozinhava — “comida era afeto para ela”, lembra Cintia — e não só ensinava tudo que sabia, como também fazia tudo que podia, o que incluía fazer um bom feijão, a costura e o crochê. Gostava de ter os seus bem perto de si, bonitos e muito bem alimentados. “Ela costurava para as netas, fazia camisolinha para as netas, todo mundo igual”, recorda.

Não era apenas com a aparência da família que se preocupava. Muito vaidosa, só deixou que a raiz branca aparecesse uma vez. Na ocasião, havia feito uma promessa que, se um de seus filhos, que tinha problemas com alcoolismo conseguisse se curar, deixaria de pintar os cabelos. Quando ele teve uma recaída, voltou a fazer a tintura preta. Chocada, Cintia questionou a decisão da sua avó, ao que ela lhe respondeu: “minha filha, olha só, eu conversei com o santo. Não está certo isso, porque se ele voltou a beber, eu volto a pintar o cabelo.”

Devido à idade, nunca teve a oportunidade de conhecer o ateliê que a homenageia com o nome, já que morava em Salvador, na Bahia, e o estabelecimento fica no Rio de Janeiro. Mas, Cintia sempre fazia questão de lhe mostrar fotos e contar o que andava fazendo. Em seu último contato, uma videochamada do hospital, estava no ateliê e, pela câmera, mostrou as paredes com seu nome bordado, dizendo-lhe “vó, seu nome está aqui na parede, estamos sempre juntas. Todos os dias da minha vida, lembro-me de você.”

Cintia acredita que essa força interna que ela possuía, sua preocupação com as mulheres da família e em mantê-las unidas e fortes, sejam um tanto incomum para uma mulher que nasceu na década de 1930 e sempre atuou como dona de casa. O que hoje se chama de sororidade, era algo que vinha de dentro dela.

“Era baseado no que ela era, na essência dela. Era uma mulher que sabia viver além do seu tempo, além da sua vida”, conta. “Ela conseguia ter uma sensibilidade e entender o mundo, coisas que ela não vivia. Isso era muito bonito, a gente se orgulha demais da avó que a gente tinha.” Segundo Cintia, ela gostaria de ser lembrada pelo que acreditava ter sido seu maior legado: ter ensinado três gerações a serem mulheres.

Levita nasceu em Salvador (BA) e faleceu em Salvador (BA), aos 86 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Levita, Cintia Levita. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Audryn Karolyne, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 11 de julho de 2020.