Sobre o Inumeráveis

Manoel Luís de Lima

1952 - 2021

Amava cuidar da sua horta, ou ficar ao sol sentada no banquinho do condomínio, ao lado da cachorrinha.

Manoel era uma pessoa reservada, um homem comprometido com seu trabalho, onde nunca deixava de comparecer mesmo que estivesse doente.

Sobre sua infância, contava que sua mãe trabalhava fora e que foi criado pela avó. Tinha a impressão de ter crescido sem o que uma criança deve ter, como uma casa e a presença dos pais. Manoel teve que aprender tudo com a vida, em meio a dificuldades.

Por falta de oportunidades de emprego, Manoel deixou a Paraíba na década de 1970 e seguiu para São Paulo apenas com a roupa do corpo e uma mala pequena. Ele falava que tinha um irmão, mas que perderam o contato quando deixou sua terra natal. Trabalhou desde muito jovem, por isso não teve tempo para estudar.

Relatava que a primeira empresa em que trabalhou foi aquela que construiu a Linha Azul do Metrô e nela permaneceu por vinte anos como operador de guindaste. Viajava a trabalho para vários lugares do Brasil, passava a semana toda fora e só voltava no fim de semana. Até que se cansou de ficar tantos dias afastado de casa, sair muito cedo, lidar com as dores de cabeça do trabalho em si e o medo de presenciar assaltos no caminho.

Voltar a estudar e completar a alfabetização era seu sonho. Assim, em 2016, logo após se aposentar, foi esse o seu primeiro desejo. Atendendo ao seu pedido, a família correu atrás para encontrar uma escola que desse todo o suporte necessário.

"Dava gosto ver os seus olhos brilharem pelo prazer em conhecer as letras! Adorava ser elogiado pelos professores pela sua caligrafia e fazia questão de mostrar a eles o seu progresso. Ficava radiante quando conseguia acertar a resposta a alguma pergunta. Ele sempre foi muito inteligente, pois mesmo sendo analfabeto era capaz de fazer cálculos complicados de cabeça", conta a filha, Maria Cristina.

No começo a esposa ficava com ciúmes, pois não entendia muito bem o motivo de ele querer ir para uma escola. Logo, porém, ela acabou aceitando, por ver que a escola o mantinha ativo após a aposentadoria e que, por meio dela, trazia alegria para casa. Como se isso não bastasse, ele pedia para os professores passarem atividades extras para que a esposa fizesse com ele, já que ela não conseguia ir para a escola, porque tinha alguns problemas de mobilidade. Assim, ele lhe ensinava tudo o que aprendia no dia, tornando uma cena comum em casa ver os dois sentadinhos, lado a lado, fazendo atividades escolares.

Outro sonho que Manoel alimentava era o de reencontrar a mãe. Com ajuda de um genro pôde realizá-lo, em 2019, quando ele conseguiu estar presente ao lado dela em seu aniversário. Planejava fazer mesmo em 2021.

A esposa, quando jovem, deixou o Recife para morar em São Paulo e acabou conhecendo Manoel no meio do caminho. O encontro foi em São Caetano e tudo aconteceu no tempo certo. Eles começaram a se gostar, depois de um tempo foram morar juntos e casaram-se quando ela engravidou da filha caçula. Nesse período, ele trabalhava duro e dobrado na empresa para conseguir concretizar o sonho de comprar a casa própria. Quando finalmente conseguiu, foi pura alegria!

Maria Cristina conta: “Ele era meu padrasto, na verdade, mas sempre o chamei de pai, porque ele nos criou, eu e a minha irmã, desde que tínhamos cinco anos. Lembro que ele sempre nos tratou com muito amor, nunca existiu uma diferença pelo fato de não sermos filhas dele — ele nos tratava da mesma forma que tratava a caçula. Sempre que uma ganhava alguma coisa, a outra também recebia e sempre nos deu carinho na mesma medida”.

As duas foram criadas em um colégio interno de freiras e conviviam com ele apenas nos finais de semana em que suas folgas coincidiam, mas guardam boas lembranças das vezes em que ele as levava ao Brás para comer carne-seca ou para brincar no parque.

“A lembrança mais forte que guardo desse tempo é do momento em que ele pediu minha mãe em casamento. Nós éramos pequenas e uma hora ele simplesmente virou em nossa direção dizendo que, caso conseguisse descascar toda a laranja sem arrebentar a casca e se o fio de casca ficasse preso na madeira quando ele jogasse, ele se casaria com a nossa mãe. E não deu outra, o fio não arrebentou e ficou bem preso na madeira”, conta Maria Cristina. Conta também que o carinho e as relações entre eles se fortaleceram quando ela perdeu o emprego, bem na época em que ele estava se aposentando e iam juntos resolver as burocracias da situação.

Ela conta também que Manoel não era o tipo de pessoa que fazia declarações de amor e que demonstrava o seu de várias formas: “Lembro do dia em que ele me ligou e disse que havia deixado uma surpresa na portaria para mim, mas não iria me contar o que era. Eu logo imaginei que era manga, porque toda quinta ele ia pegar manga. Mas quando cheguei lá me deparei com uma linda orquídea. Além disso, toda vez que ele ia na feira fazia questão de comprar vários legumes e frutas para mim. Então, era assim que ele demonstrava o amor que sentia por nós. Muitas vezes as pessoas falam de amor da boca para fora, mas ele não — ele demonstrava em pequenas coisas do dia a dia.

"Ele não queria cachorro em casa de jeito nenhum, mas quando minha irmã ganhou uma cachorrinha e a levou para a nossa casa, ela foi correndo para debaixo das pernas dele para procurar abrigo. Depois disso ele nunca mais ficava muito tempo longe dela, dava para ver que ele a amava. Sempre a levava para passear e ao 'petshop', e adorava ficar um tempo sentado no banquinho do condomínio ao lado dela 'curtindo um ventinho.'”

Morando no mesmo condomínio, Maria Cristina frequentava a casa dele todos os dias, ocasiões em que observava sua rotina e suas manias. Acordava, fazia café, ia comprar pão na sua padaria favorita, passeava com a cachorrinha, ficava sentado no banquinho do condomínio curtindo um solzinho, cuidava da sua horta. Sozinho ou na companhia de um vizinho, saía para catar manga e quando o fazia em quantidade, dividia com os outros. Ele amava dividir tudo. Após o almoço, deitava-se no sofá para assistir TV. Adorava ver filmes de faroeste ou programação contendo vida de animais.

Ele amava preparar sua merenda antes de ir para a escola. Quando a tarde caía, ele corria para fazer um café e cozinhar batata-doce. Nessas horas, ele sempre fazia questão de chamar a esposa dizendo: “Vem, minha veia”. Ela ia até ele e todas as vezes lanchavam juntos.

Manoel era do tipo quieto, não tinha muitos amigos e amava ficar em casa, no seu cantinho. Gostava passear com a cachorrinha dele, fazer as suas caminhadas diárias e cuidar de sua hortinha. E gostava de assistir aos jogos do Santos, seu time do coração.

Ele era muito simples. Só o fato de ter um teto para morar e mesa farta já o deixava feliz. Ele não precisava de muito, pois sabia que tudo que possuía era fruto de seu esforço e isso já era gratificante. Ele não gostava de quem só reclamava, porque para ele não existia tempo ruim e tudo sempre estava bom.

Ele se encontrou na sua hortinha, nos estudos e nas caminhadas. Era uma rotina simples, mas poder fazer tudo isso significava ser feliz. A felicidade também fez morada quando ele reencontrou a mãe, quando ele percebeu que podia ligar a qualquer momento para jogar conversa fora e ir até a casa dela.

Manoel amava comer! Gostava de queijo com goiabada, farinha, carne-seca. Sempre pegava o feijão e colocava farinha para fazer aqueles bolinhos e todo mundo tentava pegar um pedacinho. “Lembro que quando minha irmã fazia comida ele sempre dizia: ‘Hum, que almoço goxxtoso’. Nós sempre o chamávamos de Leôncio, devido ao bigode”, diz Maria Cristina.

Ele gostava de fazer gracinhas e ficava dançando, do nada, para fazer os outros rirem. Ele amava escutar o radinho do celular e, às vezes, ele ligava para os outros, sem querer, por não saber lidar bem com a tela.

Nos últimos tempos, sua grande paixão era uma horta que ficava num cantinho do condomínio, perto do estacionamento. Ele a cercou com vários bambus para impedir que os cachorros cavassem aquele local e construiu uma portinha, que possibilitava a sua entrada. Com essa horta ele mostrou que com as técnicas certas é possível plantar uma variedade de ervas e legumes — abóbora, milho, erva doce, manjericão — e até flores, como a linda roseira que pegou no jardim de um supermercado.

Em meio a todas as suas plantas, nutria carinho especial por aquela roseira, que floresceu pela primeira vez alguns dias antes do Natal. Conta Maria Cristina: “Foi a primeira vez que vimos a rosa, que permaneceu por muito tempo escondida. Ela era vermelha, mas não um vermelho normal; era um vermelho bem vibrante, um vermelho que reluzia todo o amor que meu pai sentia por aquele lugar, que demonstrava o quando ele nos amava. Eu acredito que florescer ali durante o Natal foi um presente que ele nos enviou. Sempre que vejo aquela roseira percebo que meu pai permanece vivo, tanto em nossos corações, como naquela horta”.

O cuidado que Manoel tinha pela horta era único e as pessoas não entendiam esse seu prazer, mas, para ele, nada era melhor do que ir a uma loja de jardinagem e selecionar os melhores adubos e a melhor terra. Além disso, era significativo para ele poder plantar, cuidar e, depois, comer e doar para os outros o que produzia. Pena que após a sua partida, por falta de tempo para cuidar, apenas o manjericão e a roseira resistiram.

Maria Cristina finaliza, dizendo: “Durante a vida ele me ensinou a ter respeito e gratidão. Na ausência, ele me ensinou a aproveitar a companhia do próximo, ficar perto da família, não correr tanto... A vida passa tão rápido, mas esses momentos ao lado de quem amamos ficam eternizados em nossos corações para sempre. Ele me mostrou como amar e como cuidar daquilo que amamos. Me ensinou a ser grata por toda conquista e a agradecer por cada minuto de vida".

"Eu guardo com carinho todos os momentos em que ficamos conversando naquele banquinho do condomínio. Nós falávamos de tudo — sobre a vida, sobre a escola dele, o meu trabalho. Viver tudo isso em poucos anos foi como recuperar o tempo que passei longe dele devido às correrias da vida. Pude aproveitar o carinho, a presença, a voz e a companhia dele.”

Manoel nasceu em Tacima (PB) e faleceu em São Paulo (SP), aos 68 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Manoel, Maria Cristina Souza dos Santos. Este tributo foi apurado por Giovana da Silva Menas Muhl, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 25 de julho de 2022.