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Marcelo Oliveira Prado

1966 - 2021

Artista, cozinheiro de mão cheia, conhecia tudo que era passarinho. De todos que precisavam, ele foi paizinho.

Este é um relato de Giovanna sobre seu querido pai, Marcelo, com quem viveu uma vida rica de aprendizado e afeto.

Meu pai era porteiro, e trabalhava muito. Às vezes passava o mês inteiro sem folga.

Meu pai era um aventureiro. Por todo lugar que passava ficava amigo das pessoas, prestava atenção em tudo. Se percebesse que alguém precisava de ajuda, ele não pensava duas vezes. Várias vezes levou gente pra dentro de casa pra dar banho, roupa e comida. Mesmo quando a gente não tinha quase nada, ele ensinou a dividir.

Criou os irmãos e os primos. Começou a trabalhar com 14 anos e só pôde estudar até a quarta série. Mesmo assim fazia poesia, aprendeu a tocar violão e baixo sozinho. Compunha e cantava, era a coisa mais linda! Amava a arte. Foi assim que se apaixonou pela minha mãe, que segundo ele, parecia a Marisa Monte cantando. A música do namoro deles era “Bem Que Se Quis”.

Conhecia muitas espécies de árvores e pássaros. Amava acordar cedinho, passar o café e assistir "Senhor Brasil". Amava ouvir e contar causos, comida nordestina e andar de bicicleta comigo. Era o amigão do meu irmão, o amor da vida da minha mãe, o parceiro de aventuras da minha avó, o meu espelho. Hoje não consigo nem me olhar no espelho porque somos iguais. Ele sempre dizia isso: "a gente briga muito porque a gente é igualzinho. Você não é só a minha cara, tem o mesmo gênio também."

A gente tinha se entendido de vez nos últimos meses. Tomamos sorvete, andamos de bicicleta, ele vinha na minha casa, que era na rua ao lado do trabalho dele, só pra gente se ver um pouquinho. Quando eu me separei do meu ex-marido, ele me deu força pra recomeçar.

Ele sempre contava da época em que substituiu o baixista do Belchior, das viagens pro Paraguai, pra Argentina e pra Manaus. Contava do resgate de gente na fronteira e falava aquele portunhol que eu vou sentir falta pro resto da minha vida. Ele tinha o melhor abraço!

As crianças e os idosos o amavam. Era só sair na rua com ele que as pessoas acenavam, chamavam, e me diziam: "seu pai é uma figura, ele é muito engraçado, tem um coração bom."

Quando ele via algo errado se metia mesmo, não deixava injustiça acontecer. Se eu fazia o mesmo, ele detestava, hoje eu vejo que ele tinha medo por mim.

Meu irmão parece muito com ele adolescente, a mesma juba cacheada e o violão a tiracolo. Eles podiam esquecer o RG, mas não o violão.

Meu pai cozinhava super bem, fazia de tudo com carinho, com capricho. Fazia das tripas coração pra não faltar nada. Muitas vezes o vi desesperado porque não conseguia. E então cantava:

“Quando eu fico sem serviço, a tristeza me atropela
Eu pego uns bicos pra fora, deixo cedo a corrutela
Eu levo meu viradinho é um fundinho de tigela
É só farinha com ovo, mas da gema bem amarela
Esse é o meu almoço, que desce seco na goela
Mais lá no meu ranchinho, a mulher e os filhinhos
Tem franguinho na panela”

Meu pai foi casado seis meses no papel com outra mulher, mas foi com a minha mãe que ele viveu a vida toda. Um não conseguia ficar longe do outro, mesmo quando se separaram, continuaram na mesma casa.

Tinham dificuldade de namorar outras pessoas, o ciúme dele com a minha mãe era o motivo das nossas brigas e o motivo principal da separação deles. Mas mesmo separados eles faziam tudo juntos. Domingo era o dia deles fazerem um café da manhã especial e no almoço, ele e minha avó cozinhavam algo juntos.

Quando eu era pequena ele dizia: “você é o docinho de coco do papai com... “ e eu respondia: “bacaxi”.

Ele me ensinou tudo o que eu sei.

Marcelo nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 55 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Marcelo, Giovanna Piraino Prado. Este tributo foi apurado por Rayane Urani, editado por Míriam Ramalho, revisado por Emerson Luiz Xavier e moderado por Rayane Urani em 13 de maio de 2021.