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Natalício Rosa de Jesus

1961 - 2021

Para conquistar o amor da companheira, fez uma foto da lua cheia e enviou pela rede social com a legenda “Hoje tem lua”.

Na teia tecida pela vida, ao longo do tempo, a história de Natalício foi se entrelaçando com a de sua família. Na dimensão da fé aprendida e vivenciada no cotidiano da casa, no modelo de fortaleza da mãe e na dedicação ao trabalho, ele soube buscar viver generosa e amorosamente.

Foi numa segunda-feira, dia 25 de dezembro de 1961, que nasceu o filho mais velho de Seu João de Jesus e Dona Leotina. E apesar da coincidência do nascimento do menino com a celebração do Natal daquele ano, o que se dizia é que o nome escolhido fora, na verdade, uma homenagem feita a um amigo de Seu João. O certo é que, desde então, todo Natal era dia de celebrar também o aniversário de Natalício.

Ao longo do tempo vieram os irmãos João, Cecília, Simone, Silvana e Raquel. E pouco a pouco a mesa dos almoços de Natal foi ficando mais cheia de pessoas e alegria. Com a maturidade e a consolidação da fé católica, sempre presente nos ensinamentos da mãe e do pai, Natalício fazia questão de deixar o seu aniversário em segundo plano. Afinal, o aniversariante principal do dia era Jesus e a celebração de mais um ano de vida pegava apenas carona nos almoços natalinos.

Quis o tempo que Seu João falecesse quando Raquel, a irmã mais nova, ainda era uma criança. Natalício, como o mais velho, não hesitou em assumir o lugar de quem apoiaria Dona Leotina nos cuidados com a família. Graças à união familiar, construída pela educação que Dona Leotina e Seu João deram aos filhos, o lugar de responsabilidade que Natalício precisou assumir contou também com a ajuda dos outros irmãos. O acontecimento foi também oportunidade de consolidar a relação amorosa e de amizade entre eles.

Desse modo, Nata — maneira carinhosa como era chamado no ambiente familiar — e os irmãos cuidaram da mãe. Se ela quisesse ir até à cidade mineira de Bonfim, onde nascera e tinha parentes e amigos, eles se organizavam para levá-la. Se manifestasse desejo de comer alguma coisa diferente, providenciavam. Sempre com a coordenação de Natalício que fazia contato com os irmãos e via quem podia ajudar em cada momento.

Nata também estava sempre atento aos irmãos e de alguma maneira acabou por ser uma espécie de conselheiro deles nos momentos desafiadores. Acompanhou também momentos importantes na vida de cada um e se orgulhava das conquistas, tais como a da irmã Silvana quando concluiu o curso superior. No dia do casamento da caçula Raquel, foi ele quem conduziu a irmã até o altar no início da celebração. Simone trabalhou um tempo com ele na corretora de seguros e seguiu trabalhando na empresa.

Como Dona Leotina era costureira, era Natalício quem, cuidadoso e orgulhoso, entregava aos clientes os trabalhos feitos por ela. Quando Dona Leotina precisava sair para comprar aviamentos, era ele quem cuidava dos irmãos enquanto ela estava fora de casa. Nesse movimento, o olhar carinhoso de filho fez de Dona Leotina um exemplo de mulher forte e perseverante. Agradecido, Natalício sempre dizia que foi o empenho e dedicação dela que possibilitaram que concluísse o ensino médio e o curso técnico de contabilidade.

Foi a partir da formação recebida em casa e na escola que Natalício iniciou sua trajetória no mercado de trabalho. Aos poucos conquistou uma carreira bem-sucedida na venda de seguros e atendimento aos clientes. A atenção e o cuidado com cada renovação de apólice ou na assistência a demandas de pane mecânica ou sinistro com algum bem segurado foram suas marcas.

Para que se tenha uma ideia de como era a postura profissional de Natalício, aqui vai um relato que ilustra bem a maneira como ele atendia seus clientes. Certa vez, uma médica dirigia seu carro em direção ao primeiro plantão num hospital público de Belo Horizonte. No caminho, o carro apresentou uma pane mecânica e a cliente fez contato com Natalício explicando que não podia se atrasar, pois era o primeiro dia de trabalho no novo emprego. Natalício estava se dirigindo para um compromisso pessoal importante, mas diante da situação, mudou o trajeto e foi direto para o local onde estava o carro da cliente. De lá, providenciou reboque, aguardou a chegada do mesmo e acompanhou o veículo até o endereço indicado pela cliente para que ficasse estacionado à espera de reparo.

O resultado dessa maneira cuidadosa de agir foi reconhecimento. Uma das companhias de seguros da qual era corretor regularmente o apontava como um dos melhores. No ranking de profissionais colaboradores da empresa, o nome de Natalício estava invariavelmente entre os dez primeiros do estado de Minas Gerais.

O escritório ficava no piso abaixo da casa onde ele morou com a sua primeira esposa, Elizabeth, e depois com os gêmeos Natália e Vitor. Com o passar dos anos Natália interessou-se pela atividade profissional do pai e passou a trabalhar junto com ele. Observador, Natalício percebeu o grande potencial da filha para atuar no mercado de seguros. E a percepção dele estava certa, uma vez que, depois de seu falecimento, Natália investiu ainda mais no segmento. Fez o curso de corretora de seguros e passou a atuar no setor, atendendo vários clientes do pai.

Ainda na dimensão da paternidade, outro acontecimento também demonstra como Natalício era um pai fantástico e amigo. Vitor queria ir ao show do Bruno Mars. A compra de ingressos pela internet estava concorrida e Vitor teve dificuldade para acessar e imprimir os bilhetes comprados. Ansioso, Vitor temia não conseguir assistir ao “show da sua vida”. Natalício acabou sendo contagiado pela ansiedade do rapaz e no seu íntimo desejava que tudo terminasse bem. Mesmo preocupado, o pai ficou por perto tentando acalmar o filho e os dois celebraram muito felizes quando finalmente os ingressos puderam ser impressos e a certeza da compra ficou confirmada. No dia do espetáculo, além de Vitor, dava para perceber a felicidade no olhar e no comportamento de Natalício que acompanhara o processo tenso de compra dos ingressos e naquele momento via a realização de um sonho do filho.

A religiosidade e fé de Natalício, que o acompanharam desde muito novo, era evidente. Todos os dias pela manhã, através da rede social, ele enviava mensagem à sua companheira e aos filhos desejando um “bom dia com as graças de Deus e Nossa Senhora Aparecida”. A cada 12 de outubro, que também é o dia do corretor de seguros, ele ia à missa rezar e pedir bênçãos sobre sua profissão àquela que, para os católicos, é considerada a padroeira do Brasil.

Na sua disposição de sempre estar em sintonia com a vida dos filhos e colaborar com aquilo que pudesse, ele fazia doações para a igreja Padre Eustáquio, localizada bem próximo ao colégio de mesmo nome, onde estudavam os gêmeos Natália e Vitor. Para a festa em memória do padroeiro, Natalício providenciava hortaliças e outros ingredientes para a preparação de caldos e feijão tropeiro vendidos nas barraquinhas da quermesse.

Na igreja de Santo Expedito, ele era Ministro da Eucaristia e um dos fundadores do “Grupo do Terço dos Homens”. Com seu jeito despachado e capacidade de organização, era Natal, maneira como era chamado na Igreja e no ambiente profissional, um dos coordenadores da romaria até a cidade paulista de Aparecida do Norte, para o encontro nacional dos grupos de Terço.

O grupo de teatro da paróquia, do qual Natalício fazia parte, era muito ativo. Na Missa Sertaneja, uma celebração toda encenada e uma das tradições da igreja de Santo Expedido, Natalício sempre conduzia a imagem de São Sebastião até o altar. Nas celebrações de Natal e Semana Santa também aconteciam encenações. No teatro alusivo à Paixão de Cristo, Natalício atuava como soldado. Certa vez, ele foi escolhido para representar um dos soldados que açoitavam Jesus. No momento da encenação, no altar, mergulhado nas memórias do sofrimento de Cristo, Natalício acabou por chorar em cena. Desde então, o episódio passou a ser levado meio na brincadeira pelos membros do grupo de teatro. Nos ensaios dos anos seguintes, era comum alguém dizer para “não colocarem o Natal para ser soldado por que, em vez de ser enérgico, ele chora”.

Foi também na igreja de Santo Expedito que Natalício conheceu Kelly, o segundo amor de sua vida. Juntos viveram quatro anos de cumplicidade e parceria. E assim, Natalício passou a ser o “Chicretin” da Kelly, apelido dado a ele por ela, uma vez que desde que se enamoraram, um estava sempre perto do outro. Nesses quatro anos, o casal se encontrava diariamente. A exceção foram dois dias durante uma viagem de Natalício e os filhos para o Rio de Janeiro.

Kelly conta que “a energia boa e o jeito extrovertido dele” aos poucos foram chamando sua atenção. Do mesmo modo que sua pele morena e seus cabelos grisalhos que demarcavam o princípio de uma calvície.

O período das paqueras e de sedução foi marcado por um fato cheio de poesia. Numa conversa, Natalício ficou sabendo que Kelly gostava muito da lua cheia. Naquele momento, a lua estava linda e iluminando as noites. Numa inspiração apaixonada, Natalício fez uma foto da lua e mandou para Kelly através da rede social com a legenda “Hoje tem lua”.

Por sua vez Kelly foi percebendo ainda mais claramente a generosidade de Natalício. Como amigo, sempre estava atento e ajudava a todos que conseguia. “Algumas vezes até mais do que podia”, completa Kelly. Para os mais próximos ele era uma espécie de motorista de aplicativo gratuito. Bastava ele perceber que alguém precisava ir até algum lugar que já se dispunha a levar.

O amor entre eles foi crescendo e, em junho de 2018, numa viagem a Lavras Novas, Minas Gerais, Natalício propôs que os dois passassem a morar juntos. Aos poucos foi ficando estabelecido que quinta-feira seria o dia deles. Assim, toda semana havia um momento em que o casal ficava em casa e aproveitava para desfrutar da relação. Tempo de assistir algo juntos, conversar e saborear drinques. Sobre estes, fique registrado que Natalício aprendeu a preparar as bebidas diante do fato de Kelly não gostar de cerveja e, generoso como era, procurou aprender o preparo dos aperitivos para agradar a sua amada.

“Minha Felicidade”, interpretada por Roberta Campos, passou a ser uma espécie de canção dos dois. Natalício, que via na letra e melodia um retrato do que vivia junto com Kelly, frequentemente dizia a ela “escuta essa música”. Algumas vezes, ele fazia questão de ligar a televisão para que escutassem a composição juntos, uma vez que a canção foi tema de uma novela.

Kelly descobriu também que Natalício amava supermercados e “era o rei das inaugurações e promoções”. Numa bela feita, durante viagem para visitar o irmão dela na cidade mineira de Piedade das Gerais, a quase obrigatória parada no supermercado aconteceu em uma loja de beira de estrada. Kelly e o pai dela ficaram no carro. Já conhecendo o hábito do companheiro, ela intuiu que ele demoraria a retornar e foi tomar um café. Natalício retorna, coloca as compras no porta-malas e arranca, sem notar que a companheira não estava dentro do veículo. Percebendo o que acontecia, bem-humorada, Kelly se apressou e, batendo no vidro do automóvel, perguntou: “Me abandonou é?”. E foi somente neste instante que, entre gargalhadas, Natalício percebeu o que se passava e que por pouco esqueceria Kelly na beira da estrada. Para aumentar a dimensão trágica do que poderia ter acontecido, o celular dela tinha ficado dentro do carro. Ou seja, se Natalício tivesse seguido viagem, não haveria como ligar e pedir que voltasse.

Entre os itens que Natalício sempre comprava no supermercado estavam pacotes de amendoins. Ele apreciava muito o sabor da semente torrada com sal e bolos de amendoim. Aonde ele fosse, sempre levava consigo uma porção de amendoins torrados e ao longo do dia petiscava.

A paixão pelos amendoins era tanta que virou uma espécie de marca de Natalício e produziu um acontecimento interessante. Em sua missa de Sétimo Dia, em vez das tradicionais fotos com alguma mensagem associada ao falecido, amigos e familiares receberam um terço acompanhado de um pacote de amendoins. Foi uma maneira levar a todos sua devoção ao terço e à Nossa Senhora Aparecida e relembrar sua paixão pelos amendoins, duas dimensões marcantes em sua existência. Natal tinha ainda duas outras características bem marcantes: sempre estava sorrindo e cada vez que perguntavam como ele estava a resposta era sempre “tudo ótimo!”.

O filho, irmão, pai, corretor de seguros, fiel devoto de Nossa Senhora da Aparecida, esposo e companheiro gostava de dançar ouvindo alguma música; de jogar buraco saboreando tira-gostos que dividiam a mesa com as cartas do baralho. Gostava também de viajar e pegar estrada, independentemente da hora, e quando ia ao Rio de Janeiro amava estar no “Quiosque do Cavalo Marinho”, na Praia da Reserva. Na hora do almoço, não dispensava um bom churrasco, arroz com costelinha e feijão tropeiro. Nos cuidados consigo, fazia questão de manter cabelo cortado e a barba feita. Para se vestir, valorizava uma roupa bem lavada e bem passada, que fizesse dele uma pessoa elegante. Entre os sonhos que não conseguiu realizar ficaram os de "tomar vacina, se aposentar e comprar um apartamento no bairro Castelo, e fazer uma viagem até Natal, no Rio Grande do Norte, junto comigo” relembra Kelly.

No campo impreciso das coincidências, não é possível deixar de contar dois acontecimentos. O primeiro é que, a exemplo do que aconteceu com sua data de nascimento — quando Natalício escolheu um dia de Natal para vir ao mundo —, o dia de seu falecimento coincidiu com o aniversário de sua companheira Kelly. O segundo acontecimento é que na noite em que Kelly revisitou suas memórias, para que fosse possível acontecer esta homenagem, o céu estava limpo e claro, iluminado pela lua cheia...

Natalício, segue vivo nas lembranças carinhosas dos sobrinhos do tio Tatal ou tio Nata. No trabalho de corretora de Natália, que segue no ofício do pai. Nas manifestações de fé e nos encontros da família para celebrar datas comemorativas. Nos momentos em que Kelly contempla as noites de lua cheia.

Natalício nasceu em Belo Horizonte (MG) e faleceu em Belo Horizonte (MG), aos 59 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela companheira de Natalício, Kelly Peluzo. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 19 de março de 2023.