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Nelson Mussi

1922 - 2020

Um avô adorável e adorado, homem de sabedoria que deixou um legado de lealdade e amor pela vida.

Era filho dos imigrantes libaneses Youssef Mussi e Saada Mussi, que vieram para as fazendas de café do interior paulista. Caçula de sete irmãs/os, aos oito meses de idade sua mãe faleceu de apendicite. Foi criado pelas duas irmãs mais velhas, com a ajuda de algumas primas. Assim, cultivou um carinho especial por várias mulheres que tiveram o papel de “mães”.

Com o tempo, a família comprou terras e prosperou até que, na crise de 1929, seu pai, Youssef, perdeu praticamente tudo. Nelson tinha apenas sete anos quando isso aconteceu e começou a ajudar a família vendendo produtos com a sua bicicleta, indo de casa em casa, percorrendo bairros, e contava que chegou a vender tecidos na zona de prostituição de Amparo, sua cidade. Falava das belas moças que compravam seus tecidos, sempre muito amáveis com ele.

Foi um menino de saúde frágil, asmático, e muitos achavam que não iria sobreviver. Mas não só sobreviveu como viveu uma vida longa, conquistando boa saúde e uma ótima situação financeira. Descobriu o esporte e conseguiu juntar suas economias para ser sócio do clube onde nadava e jogava futebol todos os dias. Tornou-se um adolescente ativo e forte, titular do time de futebol de Amparo e representava a cidade nos campeonatos de natação. Sempre lembrava com admiração e orgulho de sua treinadora, a atleta olímpica Maria Lenk, principal nadadora de sua geração.

Aos 18 anos saiu de Amparo rumo ao Rio de Janeiro para fazer uma especialização técnica em contabilidade. Depois de alguns anos no Rio, foi para São Paulo, onde passou o restante da vida.

Uma atitude que demonstra a lealdade de Nelson à família aconteceu quando ele estava ainda no início do caminho profissional, mas já recebia um bom salário: seu pai teria que vender o único bem que havia restado do patrimônio da família, um casarão do século XIX! Pois ele deu jeito de comprar a casa do pai e então todos puderam continuar vivendo lá – pai, alguns irmãos e sobrinhas/os. Depois, quando todos seguiram suas vidas e seu pai faleceu, a casa passou a ser um local de férias dos familiares mais próximos, até que foi vendida para um sobrinho que a mantém com carinho.

Nelson anotava tudo. Adorava fazer contas, escrever sobre seus sentimentos, refletir sobre a vida através dos seus escritos, e fazer contratos, mesmo que em papéis de pão. Qualquer acordo feito com as pessoas, dos mais banais aos mais sérios, eram anotados à mão, e todos deviam assinar na sua frente. Todos esses papeizinhos, anotações, pensamentos escritos, estão agora sendo achados, lidos ou relidos por suas netas.

Um fato doloroso na vida de Nelson foi a perda de seu único filho Eduardo, em 1986, aos 34 anos. Como líder do movimento estudantil durante a ditadura militar, Eduardo começou a ser perseguido quando tinha 16 anos e Nelson algumas vezes, junto com sua esposa Ruth, teve que criar estratégias de fuga para o filho, quando o DOPS batia na porta de sua casa. Eduardo ficou exilado em Paris por um tempo, com a namorada Lia, com quem lá se casou. Quando voltaram para o Brasil, tiveram duas filhas, as únicas netas de Nelson: Joana e Diana. Depois da morte precoce de Eduardo, por problemas de saúde, as meninas receberam total proteção e amor do avô. Das netas vieram bisnetos/as: Alice, Sebastian, Serena e Emiliano.

Embora fosse um homem bem-sucedido, nunca deixou de ser econômico. Consertava tudo, evitava todo tipo de desperdício. Ao mesmo tempo, sabia ser muito justo e generoso. Ensinou suas netas a usarem bem o dinheiro. Era rigoroso com seus descendentes, estimulando pelo exemplo e pelas palavras valores como ética, dignidade, bondade e amorosidade, qualidades que ele sempre soube ter.

Amava jogar tênis. Depois de aposentado, passava os dias no Clube Pinheiros, do qual foi sócio por sessenta anos. Tinha paixão pela comida árabe. Cultivava uma coalhada da família que comia desde sempre, todos os dias pela manhã. Ele dizia que os bichinhos da coalhada haviam vindo com sua família do Oriente Médio muito tempo atrás... Em seu último aniversário, quando fez 98 anos, suas netas levaram os pratos preferidos dele, e ele se deliciou como há muito tempo não se via.

Nelson continuará sendo referência de dignidade e força para quem o conheceu. Uma pessoa íntegra, aterrada, que vivia a vida cotidiana com sabedoria. Chegou aos 98 anos com saúde. Estava sempre conectado com terra e céu, estava sempre abraçando com carinho as pessoas. Gostava da vida, era alegre, adorava contar piadas, dar risadas. Um homem sábio em sua simplicidade, sempre agradecido por tudo que tinha, agradecido por estar vivo.

“Quando íamos encontrá-lo, ele fazia um café, nos dava a mão, olhava lá no fundo dos nossos olhos, perguntava como estávamos, nos ouvia, perguntávamos como ele estava, o ouvíamos. Ele era um porto seguro para nós. Inumerável, adorado, adorável...” É assim que as netas se lembrarão sempre dele.

Nelson nasceu em Amparo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 98 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelas netas de Nelson, Joana e Diana Zatz Mussi. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Bettina Turner, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 1 de agosto de 2020.