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Penha Aparecida Cardoso da Silva

1951 - 2020

Foi uma escola para muitos, sempre com humildade para ser também, uma aprendiz.

Penha Aparecida, uma mulher guerreira que, com a firmeza e a sabedoria aprendidas desde tenra idade em sua religião, enfrentou de frente os percalços da vida.

Nascida e criada na maior metrópole brasileira, São Paulo, foi nos bairros da Freguesia e do Jaraguá que construiu suas estratégias de sobrevivência na grande cidade. Dos quinze filhos de Dona Maria Noêmia e do Senhor Pedro Floriano, era a quinta. Por ter sido uma das mais velhas do casal, assumiu muitas responsabilidades do mundo adulto quando criança, ajudando a cuidar dos irmãos mais novos e participando das atividades do lar.

Ainda menina, começou a ter sinais do lado mais sensível da sua existência. O despertar da sua espiritualidade e da sua religiosidade veio com a adolescência, quando começou a aprofundar conhecimentos sobre as divindades do Candomblé e da Umbanda. Era uma pessoa sempre atenta aos sinais do sagrado em sua vida. Nesse período teve seu primeiro contato com Baiano Curisco, seu Orixá, o qual considerava um espírito de luz que fez do seu corpo uma ponte entre o plano espiritual e o terrestre, e que lhe ensinou imensamente sobre Deus, sobre ela e sobre a religião.

Como ocorre com milhares de mulheres pretas e periféricas no Brasil, teve de abdicar dos estudos para dedicar-se ao trabalho. Aos 11 anos, para não deixar faltar o alimento em casa, começou a trabalhar como doméstica. “Apesar de todo seu esforço, minha mãe ainda chegou a padecer; porém foi em busca do alimento que descobriu o seu dom na vida”, conta a filha.

Com 24 anos, Penha casou-se com Claudvir. Um amor que nasceu ainda na adolescência prosperou, resultando numa linda relação de afeto, respeito, confiança e parceria. O casamento realizado no religioso teve uma festa simples, realizada na casa dos sogros; continha famílias em comunhão, churrasco, bebidas e carne-louca. Na mesa, um lindo bolo, que comportava ao seu lado um pequeno quadro de São Jorge - protetor da união e um sinal do sagrado na vida do casal. “Vivi quarenta e seis anos ao lado dela, e se preciso fosse viveria tudo de novo! Sinto muita falta, Penha era o meu braço direito. Jamais a esquecerei. Ela me deu de presente o meu maior tesouro, as duas joias preciosas que tenho”, diz Claudvir sobre as memórias com sua amada, e também fazendo menção a família que construíram juntos.

A maternidade da saudosa Penha foi coroada com dois belos presentes: Daniela e Diana Cristina; mas, ampliada através dos filhos espirituais que vieram com a religião. Com a fundação do Templo de Umbanda Oxóssi Caçador, no ano de 1985, tornou-se líder espiritual: uma Yalorixá. Sua fé era inabalável, e sempre dizia que “era Deus no céu e o Baiano Curisco - entre os outros Orixás que ela tinha -, na Terra”, reforça sua filha, Diana.

No Templo, as sextas-feiras eram dedicadas às Giras - oras festiva e oras para o cumprimento de algumas obrigações. Para ela, um grande dia de festa era o dia que se reconectava com os Orixás, e encontrava com os filhos que a vida religiosa de lhe dera. Seu Orixá de cabeça era Ogum, e aí pode estar uma justificativa para o fato de ser uma pessoa guerreira, valente, coerente, justa e “um mar de esperança” - como diz a canção "Soldado de Ogum", que tanto gostava. Apesar de pouco ter estudado, era dona de uma sabedoria ímpar da qual escola nenhuma seria capaz de ensinar!

Sua fé, crença e o respeito as forças sagradas da natureza, foram fundamentais para que essa grande mulher se curasse dos três diagnósticos de câncer ao longo da vida. Tornou-se exemplo de superação. Por todas as suas lutas e glórias, toda família reuniu-se para celebrar os seus 65 anos; realizada através de uma festa surpresa, a comemoração foi decorada com muitas flores coloridas, espadas de São Jorge, e tinhas as comidas e trilha sonora que mais apreciava. A celebração da vida, aos seus olhos, tudo estava como o perfeito.

Penha era a materialização do verbo resistir. Construiu sua trajetória de maneira muito singular, e reconhecia a dignidade do seu trabalho. Esforçou-se ao máximo para que suas filhas não precisassem trilhar alguns caminhos que percorrera. Sua persistência resultou na formação de uma Mestra na área da Psicologia, e de uma Analista em Tecnologias de Redes de Computadores - duas mulheres potentes e donas dos seus destinos, iguaizinhas a mãe. “O Baobá é uma árvore africana símbolo de resistência, de força e potência. E foi sempre assim que vi a minha mãe. Reconheço em mim e na minha irmã frutos desse árvore. Somos os que somos graças a potência que ela foi em nossas vidas”, relata a filha Daniela.

Uma mãezona para a comunidade onde transmitiu e nutriu valores essenciais à boa convivência humana. Espalhava amor! Acolheu e ajudou muitos que careciam de alimento, para o corpo e para a alma.

Por tudo e por tanto que fez, nunca será um número; mas luz, compartilhada entre os tantos filhos que carregam um pedacinho do seu legado.

Penha nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 69 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelas filhas e pelo marido de Penha, Diana Cristina Cardoso da Silva e Daniela Aparecida Cardoso da Silva, e Claudvir Silva. Este texto foi apurado e escrito por Fabrício Nascimento da Cruz, revisado por Luana da Silva e moderado por Rayane Urani em 4 de novembro de 2021.