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Salvina Pereira de Freitas

1942 - 2020

Não perdia a oportunidade de se debruçar na janela só para admirar a chuva.

Dona Salvina era conhecida como Alice desde a infância. Podia ser porquê Salvina era como Alice, que vivia em mundo de maravilhas em sua imaginação, mas a verdade é que os seus pais não conseguiram chegar a um acordo quanto ao seu nome, deixando, então, Salvina na certidão e Alice no coração, durante toda a sua existência.

Sertaneja nascida em Pernambuco, teve nove irmãos, sendo a mais velha entre as mulheres. Seu amor pela família e sua força já eram demonstrados ali, quando mesmo muito nova, já ajudava a cuidar dos irmãos menores como se fossem seus.

Ao partir, além dos três filhos, José Roberto, Julia Maria e Sandra
Maria, deixou muitos outros órfãos de seu amor e de sua bondade. Ficaram órfãos também as suas plantas, seu jardim, e os animais abandonados, que sempre encontraram em Alice um porto seguro e uma fonte de amor. Pois assim era ela, um ser humano ímpar, que plantava e regava bondade nos mais simples gestos.

Católica e devota de Nossa Senhora Aparecida, amava a natureza! Tinha, inclusive, um fascínio pela chuva. Não perdia a oportunidade de se debruçar na janela só para admirá-la. Fosse noite ou dia, lá estava Alice admirando as gotas que o céu mandava.

Alice era viúva há 14 anos, mas teve a felicidade de acompanhar o nascimento dos netos, gêmeos, João e Maria Alice, cujos nomes fizeram uma homenagem a ela e ao marido, parceiro de vida por 45 anos, João Freitas.
Foi mãe, esposa, avó, amiga, dona de uma calma invejável, de uma vaidade singela, e de uma voz tranquila com sotaque nordestino, que nem a passagem por diferentes estados foi capaz de apagar.

Mulher forte, determinada, concluiu seus estudos já adulta e motivou muitos a estudarem depois de idosos. Os estudos eram motivo de orgulho e ela não se fazia de rogada para dizer com a boca cheia que seus filhos eram jornalistas. Sim, jornalistas! A vida não havia sido fácil, mas eles conseguiram vencer. E lá estava ela, em todos os momentos, feita de amor e doçura.

Os dias perderam um pouco do brilho para a família de Alice, que procura motivos diários para seguir em frente.

Saudades do cheiro de seu tempero que era sentido ao longe, das tantas vezes em que se sentava para ver o noticiário, um filme ou uma boa novela. E o que dizer das lembranças que tomam conta toda vez que Julia Maria e os demais familiares se deparam com uma orquestra ou com uma bela música sertaneja raiz?

Para os gêmeos, João e Maria Alice, “vovó Liça é uma estrela que está no céu” e para a filha, o que a mantém de pé é a esperança de um reencontro com sua mãe querida, por quem faz questão de ressaltar que o amor continua igual e assim seguirá até o fim dos seus dias. “Você está em mim, vive em mim. Sou muito grata pela oportunidade de tê-la como mãe”.

Que a fé em Nossa Senhora Aparecida siga presente na crença de que mãe e filha possam se reencontrar um dia, em um longo e demorado abraço, para verem juntas, muitas gotas de chuva do céu regando as mais belas flores do jardim da vida eterna.

Salvina nasceu em Afogados da Ingazeira (PE) e faleceu em Marabá (PA), aos 77 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Salvina, Julia Maria Pereira de Freitas. Este tributo foi apurado por Malu Marinho, editado por Fernanda Queiroz Rivelli, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 7 de dezembro de 2020.