1933 - 2021
Caminhoneiro de muitas histórias, ajudou a construir Brasília e conheceu parte do grupo de Lampião.
Ele era o quarto filho de uma família de 12 irmãos e o único aventureiro que ainda bem jovem, aos 17 anos, rodou o país inteiro numa boleia de caminhão. Como caminhoneiro tinha muito orgulho de ter "puxado" cimento para construir Brasília, de ter conhecido parte do grupo de cangaceiros de Lampião e de conhecer lugares incríveis em estradas precárias e caminhos pouco desbravados.
Escolheu viver em Vila Velha, no Espírito Santo, porém jamais esqueceu suas raízes mineiras — era conhecido como “o mineiro mais capixaba do Brasil”. Conquistou muitos amigos em sua jornada; sua lealdade e amizade eram tão grandes, que foi acolhido como filho em muitos lares. Era apaixonado por seus pais e irmãos e sempre os visitava.
Conheceu Darci num encontro de jovens da igreja e logo surgiu o encantamento entre eles. Ele lhe ofereceu uma carona em seu fusquinha, com mais oito pessoas, e daquele dia em diante não se largaram mais.
Namoraram por quase dois anos e casaram-se em um sábado de carnaval. Um casamento maduro para a época: ela com 32 e ele com 40 anos. Foram casados por quarenta e oito anos, num relacionamento cercado por muito companheirismo. "Papai sempre levava um cafezinho para mamãe antes que ela colocasse os pés no chão. Passaram por muitas lutas e dificuldades, mas permaneceram juntos até o fim", conta a filha Scheila.
Ele já havia se casado “no padre”, por volta de seus 17 anos — um casamento que durou pouco tempo e gerou as filhas Maria do Carmo e Luzia. Pelas dificuldades do relacionamento e por ele trabalhar muito, não pode estar tão presente na criação das filhas como gostaria. Isso não o impediu de sempre se corresponder com elas por carta e de ajudá-las financeiramente. Estiveram afastados por muitos anos, quando elas já estavam na fase adulta, até que Sheila, juntamente com uma sobrinha dele, providenciou um reencontro, após trinta e nove anos de distanciamento, devolvendo assim a paz ao seu coração.
Alcebíades foi um ótimo filho, pai e marido. Foi um pai muito amoroso, presente e generoso para seus cinco filhos. Do casamento com Darci vieram Scharlles, Scheila e Schuberth. Como avô demonstrou em dobro as qualidades de pai. Tinha um carinho enorme por suas quatro netas — Beatriz, Marcella, Lara Kamille e Bruna. Gostava de contar histórias dos tempos antigos, brincar de fazer cócegas em meio a versinhos que recitava (“Carneirinho tem sebo"?...); e era o “taxi” das meninas, buscando-as em casa, levando-as para cursos e às vezes à escola.
Também gostava de agradá-las pelo estômago, preparando lanches, maçã com mel, misto e outros quitutes, e ficando "mais pobre" quando uma delas o acompanhava até a padaria. Elas amavam brincar com o barrigão do vovô e já sabiam quais eram os pontos fracos dele ao fazerem cócegas. A Bruna era o seu "remédio": quando estava triste, sempre pedia para a mãe que a levasse para vê-lo — a interação entre os dois era linda de se ver.
Também teve netos do primeiro relacionamento, que teve o privilégio de conhecer em seus últimos anos de vida. Foi atencioso e carinhoso com todos eles nos encontros que tiveram.
Ele amava os encontros aos domingos, quando tinha prazer em receber filhos e netos. Seus papos eram sempre agradáveis e todos queriam estar junto dele — o que até gerava "ciúmes" em Darci!
Ficava feliz quando o levavam para passear em pequenas viagens, a "shoppings" e restaurantes ou uma simples ida à pastelaria. Ver a família reunida na Igreja em datas festivas também alegrava seu coração. Os filhos Schuberth e Scharlles eram da Igreja Batista e Scheila com a família, da Presbiteriana.
Alcebíades foi autônomo e teve várias profissões, a maioria delas ligada a carros ou a vendas: motorista de caminhão, instrutor de autoescola, motorista de prefeito, mascate viajante (vendia rádios e relógios nos povoados do interior de Minas Gerais e do Espírito Santo); teve uma pequena firma de venda de doces, foi corretor de imóveis e vendedor de carros usados. O comércio sempre esteve em suas veias. Por sua simpatia e honestidade, tinha muita facilidade em vender seus produtos.
Por ser vendedor de automóveis, Alcebíades usava um carro diferente a cada semana; e sabendo que logo venderia o veículo, não o abastecia. Os filhos achavam o máximo a família poder desfrutar de tantos carros! Porém, como tudo tem seus bônus e ônus, perderam a conta de quantas vezes ficaram na estrada, até mesmo em viagens, enquanto o pai tinha que sair em busca de gasolina.
O fato de trabalhar em casa possibilitava que Alcebíades fosse um pai sempre presente. Somado a isso, era muito carinhoso e generoso. Gostava de contar histórias e as mais conhecidas foram como motorista de caminhão, nas quais falava muito dos perigos que viveu e da falta de comida mesmo tendo dinheiro no bolso, porque não havia nada para comprar em algumas terras desabitadas que atravessava.
Na juventude e na fase adulta, viagens e carros estavam sempre em suas preferências. Amava dirigir. Quando completou 85 anos, os filhos impediram-no de fazê-lo, porque seus reflexos já não eram mais os mesmos — e ele sentiu muito isso! Na velhice, gostava de ver futebol na TV e brincar de jogos em companhia da esposa.
Era muito emotivo, chorava à toa e se sensibilizava com a dor dos outros. Era um homem sem igual, que possuía muitos amigos e conquistava facilmente a admiração das pessoas. A família Andrade — sobrenome da esposa — amava muito Alcebíades. Ali ele não era nem genro nem cunhado, era considerado um filho e um irmão.
Alcebíades era muito tranquilo, mas quando se aborrecia por ter sido levado ao limite de sua paciência, ficava tão bravo que travava os dentes e tremia inteiro. As brigas de adolescentes entre seus filhos o irritavam profundamente e, nesses momentos, tinha até que dar até "uns sopapos” para que os meninos sossegassem. Mas as broncas nunca passavam disso.
Com quase 30 anos ele teve um reencontro com Deus e desde então passou a professar sua fé em Cristo Jesus. Scheila fala da importância da vivência da fé para sua família: “Meu pai era muito dedicado ao estudo da Bíblia e aos trabalhos na Igreja. A oração era sempre presente na nossa família: antes das refeições, antes de se deitar, antes de fazer uma viagem. Foi professor da Escola Dominical, foi diácono e depois presbítero da Igreja Presbiteriana do Brasil por vinte anos; tinha prazer em servir. Era muito admirado na Igreja por seu engajamento e seu caráter. Graças a nossa fé em Deus, suportamos o sofrimento de nossas perdas pela Covid-19”.
Scheila conta também que o pai era um homem de muitas histórias e compartilha algumas delas: “A mais marcante é sobre seu nascimento e registro. Ele nasceu na roça e quando foi registrado a data ficou errada. Aos 17 anos tomou conhecimento de que o cartório onde fora registrado pegara fogo e que todos precisavam fazer um novo registro. Aproveitando a oportunidade e desejoso de ter a carteira de motorista, alterou seus dados colocando o dia certo, 5 de março, e trocando o ano de 1933 por 1929 para aumentar sua idade para 21 anos — a idade mínima para ser motorista. Alterou também o sobrenome de Freitas para Farias, para ficar com o nome igual ao do pai. Tirou a sonhada carteira só na segunda tentativa, pois, na primeira, deu um banho de lama no instrutor. Todos conheciam essa história, e meu pai ria todas as vezes que contava esse episódio para alguém, sempre com o seu humor inigualável. Malandrinho, ele"!
“Outra história que ele sempre contava e nos divertia era de quando ele e mamãe chegaram da lua de mel para sua nova casa, em Mendes Pimentel, Minas Gerais, e foram recebidos pela banda marcial da Igreja Assembleia de Deus: imagine a vergonha deles!"
“Ele sonhava em ser pai de uma menina, talvez por não ter criado as filhas do primeiro casamento como gostaria. Ele escrevia meu nome por todos os lugares. O primeiro filho nasceu homem e ele o amou incondicionalmente. Três anos depois eu nasci e ele ficou apaixonado: sempre fui a princesinha do papai. Ele sempre dizia o quanto me amava e se orgulhava de mim, muitas vezes com lágrimas nos olhos. Tinha a sabedoria de demonstrar amor de uma forma tal que cada filho se sentia amado.”
“Quando adolescente, eu tinha muitas cólicas e uma das memórias afetivas mais marcantes que tenho era dele cuidando de mim e orando, com a mão quentinha na minha barriga, pedindo a Deus que a dor cessasse. Era a melhor sensação do mundo! Eu amava as mãos do meu pai, gordinhas e pequenas, prontas para dar afeto.”
"Como bom mineiro, comia de tudo e sempre quieto. Sua comida preferida era a moqueca capixaba e também amava churrasco e pastel de feira. Seus hábitos eram acordar bem cedo e fazer café, ler a Bíblia e orar antes de dormir. Também tinha alguns trejeitos quando estava reflexivo — colocava o dedo indicador entre a falha dos dentes para pensar. Tinha todos os dentes naturais e fortes", conta Sheila, que herdou uma falha semelhante nos dentes da qual, juntamente com outras heranças que herdou, sente muito orgulho.
Alcebíades era apaixonado por futebol, especialmente pelo Vasco da Gama! Sempre assistia aos jogos com o filho caçula e o genro, vascaínos como ele, tendo a companhia de Scharlles, o mais velho, que muitas vezes “secava” o Vasco, pois era fluminense. As Copas do Mundo eram um grande evento: família reunida, muitos comentários efusivos, churrasco e outras delícias.
Seu sonho era assistir a um jogo de Copa do Mundo no estádio. Schuberth realizou esse sonho em 2014, na Copa realizada no Brasil, levando-o ao Mineirão, onde ele assistiu ao fatídico 7 a 1 entre a Alemanha e Brasil. O coração do velhinho preocupou os filhos que ficaram em Vila Velha, mas ele levou numa boa e resistiu à emoção. Porém, ficou tão decepcionado com a sequência de gols do adversário que até resolveu dar uma volta antes do intervalo.
Sobre os sonhos do pai, Scheila diz: “Acredito que todos foram realizados. Ele amava o mar e tinha vontade de tomar banho nas águas quentinhas da Bahia. Realizei seu último sonho em janeiro de 2020”.
Ao falar sobre o gosto musical de Alcebíades, ela conta: “A música que sempre me emociona quando penso em meu pai e nos irmãos que se foram é a canção 'Além do Rio Azul', da banda Voz da Verdade. Ela me traz o consolo de que um dia nos encontraremos no Céu, onde não haverá dor e nem tristeza. E também o seu hino preferido, 'Refúgio Verdadeiro'. Nos seus trinta e nove dias iniciais de internação, Scharlles e eu nos revezamos para cantar louvores. Quando queríamos descansar a voz e colocávamos um áudio, ele sempre dizia 'ao vivo, ao vivo', pois queria nos ouvir cantando".
Ao concluir, dentre os exemplos de vida deixados pelo pai, Scheila destaca: “O maior ensinamento que ele me deixou foi 'Ame a Deus sobre todas as coisas'! Ele também me ensinou muito sobre gratidão — sempre teve esse sentimento diante de tudo na vida. Era feliz com o que tinha e não falava em sonhos financeiros. A sua única preocupação era ter uma velhice tranquila, sem dar despesas e trabalho pra ninguém. Ele me mostrou que, ainda que tenhamos problemas, há muita beleza na vida e que reclamar não nos leva a nada. Seus últimos meses foram de muito sofrimento, mas em nenhum momento ele reclamou, apenas clamava a Deus: 'Pai, me ajude'"!
Os filhos de Alcebíades também foram vítimas da Covid-19. Para conhecer um pouco da história deles acesse as homenagens a Schuberth Andrade de Farias e Scharlles Andrade de Farias neste Memorial.
Alcebíades nasceu em Caratinga (MG) e faleceu em Vila Velha (ES), aos 88 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pela filha e pela esposa de Alcebíades, Scheila Andrade de Farias Werner e Darci Andrade de Farias. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 6 de dezembro de 2022.