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Aldevan Brazão Elias

1974 - 2020

Aldevan Baniwa sabia enxergar os cogumelos luminescentes da floresta.

O indígena Aldevan Baniwa tinha a sabedoria milenar de quem nasceu na floresta. Com uma inteligência e uma presença de espírito só suas. Descobriu espécies de cogumelos luminescentes, escreveu um livro a respeito e ainda deu uma aula para os cientistas que foram visitá-lo. Quando caminhavam na mata escura, Aldevan sugeriu que os estudiosos desligassem as lanternas e, nesse momento, a paisagem ficou repleta de cogumelos luminosos. Um dos cientistas, perplexo, lhe perguntou:

- já andei por muitas florestas, por que nunca consegui ver isso?
- Porque nunca apagou a laterna. Às vezes, pra ver, é preciso desiluminar.

Seu conselho virou um bordão, repetido por muitos. E não foi só essa sabedoria que Aldevan espalhou por aí. Era um especialista em dengue e malária, trabalhando por muito tempo na Fundação Vigilância em Saúde. Poliglota, falava português, inglês, arranhava espanhol e arrasava no nheengatu, que um dia foi a língua indígena mais falada no Brasil.

Teve duas filhas, fazia um belo tambaqui na brasa e sempre tinha energia para tudo. Tanto que, já sofrendo os sintomas do coronavírus, ainda teve ânimo para denunciar nas redes o descaso das autoridades com a pandemia.

No último final de semana antes de sua morte, colheu cogumelos. Que cada um deles ilumine a floresta eterna onde agora vive Aldevan.



Um bravo doce...

"Há várias memórias: um vírus, uma história, muitas trajetórias

1991, tranquei o curso de história e fui “ser professora” (aliás aluna da vida indígena) dos Waimiri Atroari, na Aldeia Alalaú (atentem para esta aldeia). Para chegar na aldeia, era preciso passar pela casa do senhor Valentin Elias (servidor da FUNAI), que carregava um tambor cheio de gasolina nas costas.

Entre 1991 a 1993, aprendi com os kinja um pouquinho de sua cultura e língua. Fui para roça, pescarias, festas, coleta de frutas, vi gente nascer, vi gente morrer, fiz amigos e aprendi a respeitar o modo de ser indígena.

Em 1996, retornando para área Waimiri Atroari, também no rio e aldeia Alalaú, conheci Aldevan Elias (Aldevan Baniwa). Tímido, calado, centrado em seu trabalho. Não lembro bem como começou, mas ao escutá-lo tocar no violão músicas de Legião Urbana e Engenheiros do Hawaii fui me encantando e começamos a namorar. Entre Manaus e Belém (nesta época, eu era bolsista do Museu Goeldi), através de muitas cartas e raríssimos telefonemas (afinal Aldevan passava meses na aldeia), continuamos nosso relacionamento.

Em 1997, Aldevan foi conhecer meus pais e minha família no Recife. Olha, fez um sucesso! Todo mundo queria pegar em seu cabelo e meu pai chegou a dizer que queria ser o Aldevan. Lá ele deu seu primeiro mergulho no mar. Em março de 1998, casamos. Na nossa pequena comemoração estavam alguns Waimiri Atroari e amigos do Programa Waimiri Atroari. Três dias depois, viajo para os Estados Unidos para iniciar o mestrado. Novamente, ficamos 9 meses separados e através de cartas sabíamos um do outro.

Dezembro de 1998: Aldevan chega em Tucson/AZ (o Amazonas indígena americano – terra dos Navajo, Hopi, Tohono O´odham, entre outras etnias) sem saber falar o verbo to be. Fácil? Não, não foi!!! Ele sentia falta da farinha, do rio, da família. Mas logo se entrosou com os brasileiros, os mexicanos, e não demoraria muito para o inglês dele ficar melhor que o meu. Sem sombra de dúvida, sua pronúncia era melhor que a minha!!! Sem vergonha, logo vieram as peladas com muitos americanos. Aprendeu a lidar com Adobe (material utilizado nas casas no Arizona), construindo algumas casas. Também, logo descobriu um rio no Mount Lemmon (localizado na Floresta Nacional de Coronado, ao norte de Tucson) e começou pescar trutas. Nunca comi tanta truta.

Não sabia andar de bicicleta e logo aprendeu na bicicleta que eu ia para universidade. Depois, comprou uma bicicleta de corrida e corria solto nas avenidas de Tucson. Também aprendeu a dirigir (olha Aldevan, até que você tentou me ensinar, mas não consegui aprender...)

Foram 5 anos em Tucson de muita batalha (você trabalhou como jardineiro, cuidador de um colega professor que tinha ELA, e como esquecer que você também atuou num documentário), cumplicidade e aprendizagem. Lá nasceram Kaina (2001) e Wina (2002). No parto da Kaina você quase desmaiou quando viu a agulha da Epidural. Mas o momento mais aldevaniano (quem o conheceu, entenderá) foi no nascimento da Wina. Ele cismou que queria que a Kaina participasse do parto. E claro, não funcionou. Kaina queria brincar com os instrumentos médicos. A médica num olhar fulminante falou para ele: retire esta criança daqui! E ele quis argumentar que, numa família indígena, os irmãos poderiam estar por perto.... Kaina herdou suas habilidades manuais. E Wina seu jeito sarcástico e teimoso.

No dia da minha defesa de doutorado, ele dizia com maior satisfação minha mulher é doutora em língua e cultura. Em agosto de 2003, voltamos os dois desempregados para o Brasil. Sem o apoio das nossas famílias não teríamos dado conta. E assim ficamos casados até 2016. O casamento acabou, mas a amizade e o respeito mútuo continuou. Afinal tínhamos uma história e duas filhas. A cada conquista das meninas, ele vibrava, a cada visita de minha família e de amigos, ele estava presente. E, em 2019, virou escritor através através da parceria com nossa amiga Noêmia.
Confesso, sempre foi um tabu para mim fazer pesquisa no Alto Rio Negro. O Alto Rio Negro, para além de um universo linguístico cultural fascinante, significa FAMÍLIA: é dona Joana (Tukano) e Sr. Emílio (Baniwa), avós das minhas filhas. São as tias e tios das minhas filhas, são os zilhões de primos. São as histórias do cotidiano contadas no sítio da Joanita, na ida para sua roça. É o peixe assado em Santa Etelvina. Vocês lembram do Sr. Valetin Elias, no ínicio do texto? Ele é tio do Aldevan por parte de pai (mas não época, eu não imaginava que casaria com seu sobrinho).
A COVID-19 tirou você de nossas vidas, mas não de nossas memórias e histórias. Tínhamos muitos planos para nossas filhas, não é??? Fique tranquilo pescando lá na Ilha da Oscarina (no Alto rio Negro) que eu cuidarei das meninas. Nestes últimos dias tenho dito para elas que você virou encantado.

Quero agradecer todos amigos do PWA, de Tucson, de Manaus, de Belém e do Recife pelas mensagens e lindos textos, pelo cuidado, pelo carinho... Ana, Kaina e Wina."

De sua ex-esposa e amiga, Ana Carla Bruno.

Aldevan nasceu na Ilha Oscarina (AM) e faleceu em Manaus (AM), aos 46 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo amigo de Aldevan, José Ribamar Bessa Freire e pela ex-esposa e amiga Ana Carla Bruno. Este texto foi apurado e escrito por Giovana Madalosso, revisado por Lígia Franzin e Rayane Urani e moderado por Rayane Urani em 24 de junho de 2021.