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Manuel Joaquim Rodrigues Grangeia

1943 - 2020

Nasceu anjo, partiu anjo.

Quim, como era conhecido, era português. Veio para o Brasil com apenas 3 anos, acompanhado dos pais e do irmão do meio. O caçula dos três irmãos nasceu no Brasil.

Quando criança, teve meningite, o que fez com que tivesse uma significativa perda auditiva. Pela extrema dificuldade em ouvir, não conseguiu finalizar os estudos, tendo interrompido sua formação na terceira série do então curso primário. Anos depois, um aparelho auditivo possibilitou que ele levasse uma vida normal. Sempre foi dedicado, sabia se comunicar como ninguém, mesmo quando havia alguma dificuldade em compreender.

Era muito trabalhador, fazia de tudo em casa: consertava, lavava louças, cuidava do jardim, da limpeza de calhas e de tudo mais que fosse necessário. Um exemplo de ser humano. Nunca discutia, nunca brigava, ajudava a quem podia e, nas palavras de seu irmão Victor, "Ele nasceu anjo e partiu anjo".

Dividiu com Ana Maria quarenta anos de muito amor. Ela sulista, e os dois se conheceram através de familiares. Para a distância não ser um empecilho, logo resolveram a questão: depois de dez meses de namoro, em dezembro de 1979, contraíram matrimônio. Tiveram uma ótima relação, cheia de afeto e amor, repleta de cumplicidade e respeito. O casal dificilmente brigava, no máximo um "Ah, não enche o saco!" o que era suficiente para resolver qualquer situação.

Em 1980, quatro dias antes do aniversário de Quim, nasceu Beatriz, a primeira filha do casal. Beatriz era portadora de uma má-formação congênita e, ainda bebê, faleceu. Eles nunca a levaram para casa, o que foi muito doloroso para o casal, pois a filha viveu seus quatro meses em um hospital.

Denise, a filha única de Quim e Ana Maria, nasceu um ano e meio após a partida da que havia sido a primogênita da família. Por conta da proximidade de datas entre o aniversário do pai e da irmã, ela refere-se a Beatriz como "presente de aniversário do pai".

A família então estava formada: Quim, Ana Maria e Denise, que sempre estiveram juntos numa família pequena e unida.

Junto com seu irmão, Quim foi sócio proprietário de uma loja de materiais de construção, onde Denise trabalhou, ao lado do pai, durante seis anos. No comércio, assim como na vida, era admirado por todos. Uma pessoa bondosa e que sempre respeitou o próximo.

Ele adorava sorvetes. Não ligava muito para doces, mas gostava de um sorvetinho de vez em quando. Era muito tranquilo e apaixonado por animais. A vida inteira teve gatos e cachorros e adotou a primeira cachorrinha de Denise quando a filha estava com apenas um aninho.

Por volta de 2014, foi diagnosticado com Alzheimer. Ainda assim, ia para o trabalho e continuava circulando pela região em que vivia. Tomava os medicamentos e fazia acompanhamento com o neurologista.

Teve uma hérnia e precisou ser operado. Desde então, a filha decidiu mantê-lo em casa, com medo de que algo acontecesse ao amado pai. "Foi difícil ver as mudanças que aconteciam: alterações físicas e de humor, noites sem dormir... Aos poucos, a situação foi se tornando insustentável", conta Denise. Pelo bem do pai e da filha, das relações que ambos tinham e das memórias que ela desejava manter, Denise optou por colocá-lo em um lar para idosos. Era bem próximo de onde moravam, o que permitia visitas diárias de Denise ao pai.

Então veio a pandemia e as visitas foram interrompidas. Quim foi contaminado, precisou de exames e internação.

Quim partiu, mas os legados de amor e afeto, de carinho, respeito e bondade, nunca serão esquecidos. Segundo uma de suas sobrinhas, "o tio era tão amado que Deus o levou no dia em que as pessoas demonstram amor, o dia 12 de junho".

Todos os dias Quim é lembrado. Seja numa bola de sorvete, num animal passeando pela rua, num jardim bem-cuidado... O amor e a saudade têm dessas: nem sempre vem da mesma forma, mas sempre vem. A família sente uma incessante saudade, mas, agora, conta com uma proteção extra do homem que nasceu anjo e partiu anjo.

Manuel nasceu em Portugal e faleceu em São Paulo (SP), aos 76 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Manuel, Denise Consalter Grangeia. Este tributo foi apurado por Malu Marinho, editado por Bárbara Aparecida Alves Queiroz, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 17 de janeiro de 2021.