1971 - 2020
Um sorriso no rosto, um batom vermelho e uma coleção de tupperware.
Para ela não podia faltar cor, nem festa, nem casa cheia. Queria as janelas abertas para ver o sol entrar. Preferia o dia à noite, mas isso pouco importava se tivesse uma cerveja e uma boa companhia. Adorava tirar fotos, viajar e ir à praia. Não confiava em aplicativos de banco. Não gostava de ver injustiças e também não era de guardar rancor. O amanhã era sempre novo e a vida precisava ser vivida. Essa era a Valdenice, mais conhecida por Nice.
Nice esteve na linha de frente contra o coronavírus. Durante 25 anos foi técnica e auxiliar em enfermagem em um hospital público de sua cidade e, nos últimos sete, passou também a trabalhar em uma maternidade. Não lhe faltava tempo nem disposição: depois de um plantão de 24 horas, chegava em casa com energia suficiente para cozinhar e fazer faxina. Era profissional dedicada, mãe presente, filha atenciosa, amiga querida e dona de uma alegria contagiante.
Caroline não se lembra de ter visto sua mãe triste. “Não tinha tempo ruim.” Ela conta que Nice era viciada em tupperware e tinha tantos vasos que, quando os armários da cozinha já não davam conta, passou a guardar alguns no guarda-roupa. Quando viu que já tinha demais, começou a comprar para a filha e também para o filho, Waldson. Um dia, quando Caroline ligou para a mãe e contou sobre o término de seu relacionamento, Nice respondeu tranquilamente: “Não se preocupe. Separe, mas venha para casa com os vasos de tupperware”.
Em tempos de festa, em especial a tradicional Festa do Mastro – que costuma acontecer todos os anos em sua cidade natal –, trabalhava dias seguidos, trocando até os dias de folga só para não perder a farra. Era amante do carnaval e gostava de pular ao som do Chiclete com Banana.
Quando estava em isolamento, após ter sido diagnosticada com covid-19, ligava para a filha e perguntava se poderia tomar uma cerveja, “porque não tem graça assistir live sem tomar cerveja”.
Vaidosa, mesmo no hospital arrumou um jeito de passar seu batom vermelho. Quando conseguia falar com a mãe por videochamada, Caroline brincava: “Mãe, a senhora, doente, no hospital, tá com a pele melhor que a minha”. Nice sorria. Durante esses mesmos dias, tentava persuadir a equipe médica para conseguir uma coca-cola bem gelada, do jeito que gostava.
Nunca foi ausência. Era preocupada e atenciosa com todos, não media esforços para cuidar de quem quer que fosse. Quando a doença chegou, precisou lidar com seus dois grandes medos: o de estar só, isolada de todos, e o da morte. Mesmo assim, a família e os amigos deram um jeito de manter o contato através de ligações e chamadas de vídeo. Houve até comemoração de aniversário e parabéns sendo cantado na frente de sua casa. O tempo podia não ser dos melhores, mas tinha que ter festa.
Partiu em um domingo cinzento. Era tão querida que recebeu uma carreata como homenagem. Deixou saudades e uma lembrança bonita dos dias em que entrava em casa e abria as janelas “para o sol poder entrar”. “Deus não poderia ter me dado pessoa melhor para ser minha mãe”, conta Caroline.
Valdenice nasceu em Capela (SE) e faleceu em Aracaju (SE), aos 49 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Valdenice, Anne Caroline Silva Meira. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Jhennifer Laruska Leal Fraga, revisado por Paola Mariz e moderado por Rayane Urani em 16 de setembro de 2020.