1965 - 2021
Ele tentou viver no Japão, mas a experiência da palavra saudade trouxe-o de volta ao Brasil.
Um sansei muito brasileiro. A frase define a pessoa de Marco Antônio, um descendente dos japoneses Luiz Akira Ikeda e Odete Akiko Ikeda, nascido no Brasil, que assimilou completamente o jeito brasileiro de ser. Inteligente, carinhoso, versátil e com muito jogo de cintura, ele viveu e cultivou afetos e felicidades.
Com muita facilidade para aprender e uma versatilidade incrível, Marco fazia de tudo um pouco na vida particular e profissional. Formado em um curso técnico pelo SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, através de sua habilidade, transitou pelas atividades de marcenaria, manutenção de eletrodomésticos, mecânica de automóveis e reformas prediais. Naquilo em que colocava a mão, o resultado sempre era muito bom.
Marco também foi parceiro do pai, Akira Ikeda, um comerciante de autopeças. Durante o tempo em que trabalhou com ele no estabelecimento, era um “faz tudo”, atuando da gestão e compras ao contato com clientes no balcão. Além do contato direto com a freguesia, ajudava seu Akira na gestão dos funcionários e no contato com outras empresas do ramo de autopeças e fornecedores.
Para além disso, foi também massagista, depois de um curso para aplicação de Shiatsuterapia feito juntamente com uma de suas esposas, a Lia. Juntos, aplicavam a técnica japonesa em eventos associados à cultura nipônica. Nesses espaços, através de sua grande capacidade de se comunicar e cativar as pessoas, Marco Antônio conquistava clientes para atendimento domiciliar, o que mantinha a possibilidade de renda mais constante com a atividade.
Importante dizer que em qualquer espaço ou situação, Marco era comunicativo. Por onde ele passasse, logo cativava as pessoas com seu modo afetuoso e fazia amizades. Graças a seu interesse por estudar temas variados, transitava bem em qualquer assunto, e a conversa fluía com facilidade com qualquer um.
Na vida afetiva, primeiramente ele foi casado com Sandra, com quem gerou Heitor Yudi e Henrique Yoshio. Num depoimento emocionado, gravado no cotidiano da casa e entrecortado por pausas para limpar a garganta, ele conta que a principal lembrança do pai é sua boa vontade em ajudar aqueles que conseguia e podia. Recorda também como, no jeito comunicativo e falante de Marco, o pai sempre conversava muito, tanto com ele quanto com Henrique e “procurava saber o que estava rolando nas nossas vidas.”
Apesar dos conselhos dados aos de casa de que cada um devia cuidar prioritariamente de suas existências e não se envolver com problemas dos outros, na prática Marco fazia o contrário. Usando um ditado popular, Heitor sintetiza bem a situação afirmando que “era o famoso, faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.”
Ainda na dimensão afetiva, Marco também foi casado durante dezesseis anos com Lia. E acolheu a enteada Gabriele como sua a filha. Depois da separação, formou casal com Elziane, com quem não teve filhos.
Gabriele recorda com carinho do tempo em que, quando ela estava com seus 10 anos, Marco Antônio estava sempre presente na hora das tarefas escolares. Com uma cultura geral impressionante, o padrasto tinha enorme paciência para explicar e colaborar para o aprendizado dela.
Como a segunda esposa é nordestina, durante o tempo de relacionamento deles era comum se dizer que Marco “era o Japonês mais cearense que todos tinham conhecido”, conta sorrindo a enteada Gabriele. Ele nem apreciava tanto a comida japonesa e preferia diversos pratos nordestinos preparados por Lia. Por um tempo fez capoeira e aprendeu a tocar berimbau.
De um jeito bem brasileiro, quando alguém visitava a casa de Marco, ele gostava de receber as pessoas na cozinha. Após os cumprimentos e protocolos de chegada e de uma boa conversa, ele seguia até a geladeira e colocava sobre a mesa as guloseimas que tivesse disponível. E ali, no transcorrer da conversa, todos comiam e riam bastante. Um dos pratos que ele gostava muito de preparar para as refeições era o nhoque que, segundo se conta, era delicioso.
Outra recordação marcante de Gabriele está associada à gravidez e nascimento do neto Gustavo. Quando ficou grávida, Gabriele e Lia ficaram receosas de contar o fato para Marco. Gabriele temia que ele não reagisse bem ao fato de a gravidez ter acontecido inesperadamente. Ao contrário disso, Marco recebeu a notícia com alegria. E desde o momento em que soube, não poupou esforços e muitos cuidados com a enteada e com o neto que ela gerava. Durante o pré-natal, fazia questão de levá-la ao médico. No dia do nascimento, estava no hospital e desde as primeiras horas seguiu acompanhando Gustavo durante a vida. O neto, que depois de um certo tempo, passou a ser chamado de “Bonitão”, teve em Marco um “ditian”, palavra japonesa que significa avô, amoroso.
Nesse ponto é necessário trazer à tona uma outra habilidade e gosto de Marco Antônio: a música. Sempre muito musical, além do berimbau, ele tocava violão. E foi através da música que encontrou mais uma maneira de estar próximo dos filhos Heitor e Henrique e do neto Gustavo. Os três herdaram a musicalidade do pai e do avô, que era amante do rock. Heitor aprendeu a tocar baixo e contra-baixo. Henrique também leva muito jeito e tem facilidade com a música e é professor de canto. Por sua vez, o neto Gustavo fez vestibular para música. Em resumo, a música foi um elo entre os quatro.
No transcorrer da vida e no relacionamento com as diversas famílias, Marco Antônio sempre falava com muito orgulho dos filhos, da enteada e do neto. Celebrava cada conquista e cada momento importante. E procurava ressaltar as qualidades de todos nas conversas que sempre tinha com cada um.
O amor por eles era de tal ordem que num tempo em que foi para o Japão para tentar a vida por lá, conseguiu ficar no máximo por um ano. O seu lado brasileiro falou mais alto e a experiência de um sentimento que só é expresso em português através da palavra saudade o trouxe de volta ao Brasil.
Por fim, é importante destacar também um aspecto associado à sua origem japonesa. O nome completo dele metade em português e metade em japonês: Marco Antônio Mitsuo Ikeda. Embora ele não fosse uma pessoa religiosa e ligada aos rituais budistas, no budismo japonês, quando alguém morre, manda-se fazer um "Ihai" ou adorno também chamado de "Hotokesan", que na tradução para o português significa “espírito”, “fantasma”. Trata-se de uma espécie de memorial, onde ficam registrados com ideogramas a data de nascimento, de falecimento, o nome da pessoa e a idade que tinha quando partiu.
O filho Henrique percebeu que o ideograma associado ao nome “Mitsuo” está associado à luz e significa “aquele que traz a luz ou aquele que ilumina”. E no olhar saudoso e amoroso dos filhos, de fato o pai era alguém que, na disposição de ajudar aqueles com quem convivia, trazia muita esperança para as pessoas e buscava sempre deixar as situações leves. Heitor sintetiza que o pai “era um pontinho de luz para quase todo mundo que ele conhecia”.
Marco deixou sonhos por realizar: o de se formar em medicina, o de abrir sua própria empresa e o de ver o neto Gustavo dirigindo...
Marco Antônio, um homem que tinha mais história do que idade, segue vivo, na leveza e carinho com que Gabriele fala do padastro; nos momentos em que Gustavo segue dirigindo por aí; na musicalidade de Heitor e Henrique. Mas sobretudo, e principalmente, nos momentos em que por suas ações aqueles que ele amava tornam-se pontos iluminados no acolhimento e ajuda a quem precisa.
Marco nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 56 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela enteada e pelo filho de Marco, Gabriele de Souza Lima e Heitor Yudi Ikeda. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 23 de maio de 2022.